domingo, 17 de outubro de 2010

As eleições e a vitória da ideologia familista cristã


Alípio de Sousa Filho
Sociólogo, professor da UFRN. Editor da revista Bagoas.

           
            Mais uma vez, nas eleições nacionais, entra em cena a ideologia familista cristã. De natureza conservadora, para esta, a família somente pode ter existência na forma do casamento entre homens e mulheres, não se tolerando a ideia de família homossexual, homoafetiva ou gay, concretizada pela união de dois homens ou duas mulheres. Até mesmo o termo casamento vira objeto de disputa, não se admitindo aplicar a gays, lésbicas e transexuais. Não é por outra razão que, quando se fala da reivindicação ao reconhecimento dos casais lésbicos ou gays, insiste-se em precisar que se trata de reconhecimento de “união civil” de pessoas do mesmo sexo. O casal heterossexual não apenas seria o único modelo para o qual se tornaria possível falar de casamento, mas constituiria também a experiência única de composição da família, e esta devendo ainda assegurar que nela não se pratique o sexo antes e fora do casamento e o aborto. No familismo cristão, gays, lésbicas e transexuais são seres aberrantes, que não merecem a institucionalização de direitos, e o aborto é pecado e crime. No Brasil, leis e políticas que implementem direitos LGBT e políticas que contemplem o aborto são tomadas como afrontas à propalada família brasileira, e esta pretendidamente uma “família cristã”.  É bem fácil de enxergar que o familismo cristão é conservador e homofóbico. Nestas eleições, a atuação de bom número de igrejas cristãs tem constituído verdadeiro cerco em volta das candidaturas presidenciais.
            Para prejuízo geral, a luta por vencer tem tornado Dilma e Serra reféns dessa ideologia, produzida pela máquina das igrejas cristãs de todos os matizes. Em nome do pragmatismo político ou das estratégias do marketing, que colocam a ação política sob o signo da dicotomia maniqueísta ou do vale tudo, os dois candidatos rebaixam suas próprias visões pessoais e de seus partidos, pois, não é de se acreditar que pensem o que estão dizendo nas entrevistas, em seus programas políticos, cartas ou documentos que assinam. Fazendo concessões ao familismo cristão conservador, os dois, com poucas distinções, deixam a sociedade escravizada ao seu próprio obscurantismo, quando tinham o dever político de enfrentá-lo, desafiá-lo, contribuindo com avanços culturais, que, até aqui, a sociedade brasileira quase inteira ignora. E aqui vale destacar que, de minha parte, não se trata de tomar um ou outro candidato como vítima ou algoz, menos ou mais cúmplice da ideologia familista cristã ou até mesmo menos ou mais seu manipulador. Fora do maniqueísmo das paixões políticas (muito em alta no momento!) e da lógica empobrecida do pragmatismo (não é pragmático discutir temas para perder, melhor esconder posições e ganhar!) – formas autoritárias da política –, trato de chamar atenção para o dano político e cultural que se produz ao se perder a chance de enfrentar, mesmo com diferenças, o conservadorismo que amanhã atrapalhará o vencedor que pretenda emplacar transformações, e que já atrapalha avanços que a sociedade brasileira não pode mais continuar negando ao segmento LGBT e de mulheres, que, embora minorias políticas, são numericamente importantes segmentos sociais.
            Nessas eleições, por temor de enfrentar o familismo cristão conservador, a questão gay não aparece nos programas eleitorais de nenhum dos candidatos, não é discutida, e o tema do aborto virou motivo de chantagem, ingrediente eleitoreiro. O medo de enfrentar o poder eleitoral das igrejas conservadores (algumas com práticas que são verdadeiro terrorismo da palavra!) tem deixado os candidatos, neste segundo turno, inteiramente prisioneiros de posições acanhadas que só acanham a sociedade brasileira. Os discursos dos candidatos ou daqueles que os apóiam referem-se a esses temas como “coisas sem importância”, “baboseira”, “política do submundo”, “baixaria”, “questões secundárias”, entre outras expressões, revelando o quanto, em suas concepções, a política é compreendida como a esfera de coisas cuja importância não torna possível a ocupação com temas “menores” como os direitos civis de gays, lésbicas e transexuais ou a questão do aborto. Mesmo a alusão a que alguém seja gay ou lésbica é tratada como “acusação”, “calúnia”, numa clara revelação que se tem a homossexualidade como um atributo negativo. Do contrário, por que tomar como calúnia ou acusação a referência (verdadeira ou falsa) à homossexualidade? O modo de responder não deveria ser outro? Por que sentir-se “difamado” por alusão à suposta homossexualidade? Na tensão da disputa, perde-se o senso crítico e o senso comum vai ganhando a confirmação de suas representações, preconceitos...
            Não se torna mais possível que, no século XXI, dois importantes partidos como o PT e PSDB se permitam rebaixar seus programas, discursos e posicionamentos à vontade de religiões conservadoras que conduzem o país para o atraso cultural e político. Conciliar com a vontade das igrejas cristãs conservadoras e homofóbicas, em nome de pragmatismo político, é permitir que aqueles que hoje exigem “compromissos de campanha” contra o aborto e contra os direitos LGBT, e outros temas que incomodam, tornem-se amanhã, dentro e fora do Congresso Nacional, como cães de guarda da moral sexual vigente, os primeiros e mais ferrenhos opositores de posicionamentos e ações de governo favoráveis a políticas públicas e direitos que não podem mais continuar suspensos, negados, obstruídos, confiscados.
            Na disputa final, PT e PSDB deveriam dar lições de coragem política, enfrentando a ideologia familista cristã conservadora que faz com que a sociedade brasileira seja hoje uma das mais atrasadas em relação aos direitos LGBT e a questão do aborto. Mas, inversamente, assistimos os dois partidos com peças de marketing caricaturescas de “mães brasileiras”, “mulheres grávidas”, “valores sagrados”, “fé”, “família”, visitas a templos etc. Imagens e palavras de concessões ao familismo cristão conservador, numa clara alusão a posições anti-aborto e contrárias a qualquer defesa de direitos que incluam as reivindicações do segmento LGBT como casamento, adoção etc. Dilma acaba de assinar carta em que se compromete a nada fazer que “afronte à família”, mesmo diz que alterará o PLC 122 (que trata da criminalização da homofobia) nos pontos em que este seja “ameaça” à liberdade religiosa e de expressão (isto é, tenta acalmar os padres e pastores homofóbicos, que querem ter o direito de, em seus sermões, continuar maldizendo a homossexualidade e os gays e lésbicas) e que é “pessoalmente contra o aborto”. Por sua vez, Serra traz a figura da comovente “mãe” e sua solidária ideologia do “amor materno”, discurso subliminar contra o aborto, e, embora tenha assinado documento em que se posiciona favorável à “união civil” de homossexuais, declara que não é favorável ao “casamento”, assunto que seria das igrejas.
            Dilma e Serra deveriam ter a coragem de desafiar a ideologia familista cristã numa prova de coragem para governar uma sociedade que não pode ter no seu Estado um lugar de atuação de religiões, mas um espaço laico. Única possibilidade de elevar a própria esfera política à posição de esfera na qual não se toma posições baseadas em crenças ou critérios religiosos, mas a partir de critérios racionais, públicos e políticos. Todavia, escondidos nas razões do pragmatismo político-eleitoral e submetidos à ideologia do marketing, que, contemporaneamente, substitui a própria política, as duas candidaturas rebaixam seus propósitos e deixam-se derrotar por um familismo homofóbico e conservador que, qualquer que seja o resultado eleitoral, já pode comemorar sua vitória.

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