quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O mandonismo local

Praça Vigário Antônio Joaquim - 1937
A política é uma prática social. Portanto, é "o lugar onde se articulam o social e sua representação, a matriz simbólica na qual a experiência coletiva se enraiza e ao mesmo tempo se reflete", observa Pierre Rosanvallon.

É no cotidiano que descobrimos a dimensão do político, da esfera político-social. Com isso, o ato de pensar é "um ato de vontade política". Posto desta forma, é dentro do contexto das relações sociais (isto é, das representações sociais) e materiais que os indivíduos determinam suas reações (ou aceitações!) à estrutura normativa (ao poder constituinte; ao mando do coronel, do prefeito, do deputado etc) e suas escolhas com o respeito a ela.

Neste contexto de dominação, movem-se as pessoas que arrancam (inconscientemente!) das relações de poder os traços desta dominação. Por isso, como explicar, a persistência no poder de grupos políticos tradicionais conservadores e corporativistas? Dentro da estrutura social capitalista, as classes ou grupos sociais são divididos hierarquicamente, mediante os valores e padrões dominantes, e consequentemente, as condições socioeconômicas é que atuam para incluir alguns (como capazes e prontos para mandar) e excluir outros (vistos como incapazes e prontos para obedecer). Logo, os relacionamentos socias e pessoais desempenham um papel determinante no estabelecimento das relações de poder.
As relações de poder e de dominação se perfaz de modo cabal nos substratos político e cultural. Peças forte da ideologia ao mesmo tempo conservadora e dominante. A interação dos caracteres políticos e culturais determina a subordinação da comunidade aos valores dominantes. Em síntese, com o domínio político (das famílias tradicionais no Nordeste, ou seja, das oligarquias regionais) da família Rosado, funda-se na cidade de Mossoró um modo de viver pautado na dominação da coletividade, enquanto massa eleitoral. Tal sistema de dominação instaurou no imagínário social e político local um sentimento de devoção absoluta "subjulgar o outro ao seu próprio mundo de dominação". Mas, com essa premissa fica entendido, o que se pretende é a reprodução e manutenção da ordem estabelecida.

Apesar dos mecanismos de dominação característicos da República Velha (1889-1930), estarem manifestados na prática política da oligarquia Rosado, de modos amplos e diversos, acredito que serviram para ancorar firmamente os Rosado como legitimos representantes do poder político local. De fato, os mecanismos de poder, parecem não se esgotarem. Assim, a ação dominante e conservadora da oligarguia vaí operando ao longo da história. Formado ao longo do século XX, o clã Rosado tem se transformado num núcleo familiar conservador, definindo-se pela voz dos seus líderes Jerônimo Rosado, Dix-sept, Vingt e Dix-huit. A história politica desse grupo é a de uma aliança estratégica (isto é, ao sabor da conveniências!) entre os principais grupos políticos tradicionais no âmbito nacional e estadual. Não obstante, as "divisões interna" não tocaram sua unidade. Ou seja, o clã se mantêm, politicamente, fortalecido.

Assim sendo, o discurso político oligárquico, desde Jerônimo Rosado, foi de manter sob controle sociedade e opositores. Mas, que, está presente, ainda hoje, na cena política. Para entender o caráter ideológico dominante dos Rosado, convém examinar que tal discurso não produz a liberdade social e política. Os agentes politicos de hoje (Rosalba Ciarlini, Laire Rosado, Sandra Rosado, Larissa Rosado e Fatíma Rosado) deitou raízes nas práticas reprodutoras e conservadoras de poder dos antepassados. É no interior do discurso ideológico que são formuladas as estratégias politicas dominante.

O sistema hegemônico dos Rosado têm lhes assegurado uma dominação ideológica sobre a população através da cultura. A cultura as elites se insere no cotidiano dos grupos sociais como formas culturais dominantes, que está sempre presente na dominação social. A nosso ver, os espetáculos culturais Chuva de balas no País de Mossoró e o Auto da Liberdade patrocinados pelo Poder Executivo, ultimamente, não tem contribuído para uma maior compreensão do passado e do presente histórico.

O que desejamos afirmar é que, ditado pela lógica do sistema capitalista, a reprodução da dominação ideológica -- já posta historicamente! --, do clã Rosado tem criado por condicionamentos políticos e culturais formas de exploração variadas sobre a população. Nesse sentido, a sociedade mossoroense se enxerga pelos valores da classe dominante.
Muitas vezes, a cultura contribue para mascarar, na vida social, a existência de indivíduos socialmente diferenciados. Raciocinando a partir desse conceito (cultura), as relações de poder construída(s) pelas ações humanas, tem gerado "cargas históricas desiguais", mesmo sob a ação da instância politica que tem assegurado as condições de reprodução do modo de produção dominante. Portanto, a dominação espacial por parte da família Rosado é, também, uma forma de manter a opacidade de compreensão da realidade.

A ação política das elites locais produziram (e reproduz!) um modelo determinado de convivência social, onde os interesses se apresentam harmônicas. Os Rosado ao chegarem a Mossoró fixaram um espaço de atuação social, econômica e politicamente definida. Disto pode-se concluir que o oligarquismo como comportamento político é um dos elementos válido para análise do contexto local. A perspectiva histórica evidencia que na evolução politica do país, o poder burguês, "para assegurarem os seus mecanismos de controle no interior do aparelho estatal: seja na esfera local, regional ou central". Verifica-se, então, que as "políticas públicas" têm sido utilizadas com a finalidade de permitirem a dominação política, do que a promoção da cidadania. Nesse contexto, as classes dominantes locais têm se pautada do discurso conservador, indispensável para preservação dos seus domínios politicos e econômicos.

Assim, o discurso político ideológico dos agrupamentos políticos que compõe a oligarquia Rosado têm escamoteado as contradições políticas, econômicas, sociais e culturais diluíndo das classes subalternas a visibilidade social, isto é, da percepção do que está a sua volta. Incobrindo, assim, o sentido dos conflitos sociais, lutas de classes e relações de poder. Nesse sentido, cabe, aqui, uma indagação. Qual o espaço de atuação da família Rosado, enquanto grupo político, na sociedade mossoroense para legitimar sua posição de predomínio e hegemonia na cidade? A história de Mossoró, mesmo patrocinada pelos meios oficiais, apresenta uma visão tradicional e conservadora, onde as ações dos benfeitores e construtores (os Rosado!) da cidade move os acontecimentos.

Deste modo, pode-se dizer que a história local criou a ideia de que na sociedade mossoroense não havia hierarquia ou distinção sociais. Havendo, somente, uma sociedade harmônica e equânime.Os Rosado se apresentam com herdeiros deste passado, no qual pontificam com heróis seus antepassados (Jerônimo, Dix-sept, Dix-huit e Vingt). Para a oligarquia Rosado, Mossoró sempre foi (e será!) o "paladino da liberdade e do pioneirismo", representada na figura de seus heróis-civilizadores, que destacaram-se por serem destemidos, altaneiro etc. Dentro de um contexto histórico forjado, verificou-se um processo de extrema concentração de poder nas mãos as elites locais, onde o negro, após o 30 de Setembro de 1883, tornou-se um elemento subalterno, dominado e despossuído socialmente. A historiografia oficial local tem, ideologicamente, instrumentalizado a auto-imagem da família Rosado, universalizando-a para toda a sociedade. Tece-se, assim, uma visão não-crítica da realidade local.

A ideia que a oligarquia Rosado constrói de si mesma e que se projeta na figura de seus membros, como dignos, justos e merecedores da posição que ocupa, passa a ser aceita por todos os mossoroenses. Uma vez que, o conjunto de ideias e valores dominantes são aceitos por todos, imaginando uma nova sociedade e que realize seus sonhos.

Entretanto, para que pudesse se manter no poder ao longo de muitos anos, os Rosado estabelecem uma sólida aliança política, de acordo com as circunstâncias, com os grupos políticos conservadores para que a oposição (sem força política) se mantenha à margem do processo político.

 É relevante observar que, a cada Rosado no comando do Palácio da Resistência (sede o executivo municipal), os aparatos ideológicos de sua sustentação no poder são reforçados. Os "intelectuais orgânicos" da historiografia oficial, reunidos no Boletim Bibliográfico/Coleção Mossoroense irão construir uma determinada imagem da história da cidade na qual a família Rosado é vista como protagonista principal. A historiografia oficial difundiu nas escolas "uma visão saudosista do passado", onde era (e, ainda é) exaltada as virtudes e os grandes feitos dos seus antepassados.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A conivência da mída no Brasil


"A manchete da Folha (*) transforma golpistas em defensores do regime"

O Conversa Afiada reproduz outro excelente artigo de Emir Sader, publicado em seu blog na Carta Maior:

Onde você estava em 1964?

Há momentos na história de cada país que são definidores de quem é quem, da natureza de cada partido, de cada força social, de cada indivíduo. Há governos em relação aos quais se pode divergir pela esquerda ou pela direita, conforme o ponto de vista de cada um. Acontecia isso com governos como os do Getúlio, do JK, do Jango, criticado tanto pela direita – com enfoques liberais ou diretamente fascistas – e pela esquerda – por setores marxistas.

Mas há governos que, pela clareza de sua ação, não permitem essas nuances, que definem os rumos da história futura de um país. Foi assim com o nazismo na Alemanha, com o fascismo na Itália, com o franquismo na Espanha, com o salazarismo em Portugal, com a ocupação e o governo de Vichy na França, entre outros exemplos.

No caso do Brasil e de outros países latinoamericanos, esse momento foi o golpe militar e a instauração da ditadura militar em 1964. Diante da mobilização golpista dos anos prévios a 1964, da instauração da ditadura e da colocação em prática das suas políticas, não havia ambigüidade possível, nem a favor, nem contra. Tanto assim que praticamente todas as entidades empresariais, todos os partidos da direita, praticamente todos os órgãos da mídia – com exceção da Última Hora – pregavam o golpe, participando e promovendo o clima de desestabilização que levou à intervenção brutal das FAA, que rompeu com a democracia – em nome da defesa da democracia, como sempre -, apoiaram a instauração do regime de terror no Brasil.

Como se pode rever pelas reproduções das primeiras páginas dos jornais que circulam pela internet, todos – FSP, Estadão, O Globo, entre os que existiam naquela época e sobrevivem – se somaram à onda ditatorial, fizeram campanha com a Tradição, Família e Propriedade, com o Ibad, com a Embaixada dos EUA, com os setores mais direitistas do país. Apoiaram o golpe e as medidas repressivas brutais e aquelas que caracterizariam, no plano econômico e social à ditadura: intervenção em todos os sindicatos, arrocho salarial, prisão e condenação das lidreanças populares.

Instauraram a lua-de-mel que o grande empresariado nacional e estrangeiro queria: expansão da acumulação de capital centrada no consumo de luxo e na exportação, com arrocho salarial, propiciando os maiores lucros que tiveram os capitalistas no Brasil. A economia e a sociedade brasileira ganharam um rumo nitidamente conservador, elitistas, de exclusão social, de criminalização dos conflitos e das reivindicações democráticas, no marco da Doutrina de Segurança Nacional.

As famílias Frias, Mesquita, Marinho, entre outras, participaram ativamente, no momento mais determinante da história brasileira, do lado da ditadura e não na defesa da democracia. Acobertaram a repressão, seja publicando as versões mentirosas da ditadura sobre a prisão, a tortura, o assassinato dos opositores, como também – no caso da FSP -, emprestando carros da empresa para acobertar ações criminais os órgãos repressivos da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, “Os cães de guarda”, da Editora Boitempo, relata com detalhes esse episódio e outros do papel da mídia em conivência e apoio à ditadura militar.)

No momento mais importante da história brasileira, a mídia monopolista esteve do lado da ditadura, contra a democracia. Querem agora usar processos feitos pela ditadura militar como se provassem algo contra os que lutaram contra ela e foram presos e torturados. É como se se usassem dados do nazismo sobre judeus, comunistas e ciganos vitimas dos campos de concentração. É como se se usassem dados do fascismo italiano a respeito dos membros da resistência italiana. É como se se usassem dados do fraquismo sobre o comportamento dos republicanos, como Garcia Lorca, presos e seviciados pelo regime. É como se se usasse os processos do governo de Vichy como testemunha contra os resistentes franceses.

Aqueles que participaram do golpe e da ditadura foram agraciados com a anistia feita pela ditadura, para limpar suas responsabilidades. Assim não houve processo contra o empréstimo de viaturas pela FSP à Operação Bandeirantes. O silêncio da família Frias diante da acusações públicas, apoiadas em provas irrefutáveis, é uma confissão de culpa.

Estamos próximos de termos uma presidente mulher, que participou da resistência à ditadura e que foi torturada pelos agentes do regime de terror instaurado no país, com o apoio da mídia monopolista. Parece-lhes insuportável moralmente e de fato o é. A figura de Dilma é para eles uma acusação permanente, pela dignidade que ela representa, pela sua trajetória, pelos valores que ela representa.

Onde estava cada um em 1964? Essa a questão chave para definir quem é quem na democracia brasileira.


(*) Folha é um jornal que não se deve deixar a avó ler, porque publica palavrões. Além disso, Folha é aquele jornal que entrevista Daniel Dantas DEPOIS de condenado e pergunta o que ele achou da investigação; da “ditabranda”; da ficha falsa da Dilma; que veste FHC com o manto de “bom caráter”, porque, depois de 18 anos, reconheceu um filho; que matou o Tuma e depois o ressuscitou; e que é o que é,  porque o dono é o que é; nos anos militares, a Folha emprestava carros de reportagem aos torturadores.


Fonte: conversaafiada.com.br

domingo, 24 de outubro de 2010

O banzo e a escravidão no Brasil

A saudade que mata - Pesquisa discute a polêmica questão do banzo como "nostalgia mortal" dos escravos

Por Urano Andrade 

Reprodução do livro rio de janeiro - Cidade Mestiça
"Vai com a sombra crescendo o vulto enorme/ Do baobá.../ E cresce na alma o vulto de uma tristeza, imensa, imensamente...”, escreveu o poeta parnasiano Raimundo Correia no soneto Banzo. Essa tristeza, batizada de banzo, era um estado de depressão psicológica que tomava conta dos africanos escravizados assim que desembarcavam no Brasil e seria uma enfermidade crônica: a nostalgia profunda que levava os negros à morte. “No século XIX, obras como as do médico francês François Sigaud e do naturalista Carl F. von Martius, bem como crônicas de viajantes europeus, veicularam essa ideia de uma nostalgia fatal dos escravos. Nestes relatos, as mortes voluntárias dos cativos são descritas como uma forma passiva de suicídio – recusar alimentos e deixar-se morrer de inanição e tristeza – e também pelos métodos universais, como enforcamento, afogamento, uso de armas brancas etc.”, explica a psiquiatra Ana Maria Galdini Oda, professora adjunta do Departamento de Medicina do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), que analisou o banzo em sua pesquisa Dos desgostos provenientes do cativeiro: uma história da psicopatologia dos escravos brasileiros no século XIX, que recebeu da FAPESP uma bolsa do Programa de Jovem Pesquisador em Centro Emergente. “Invariavelmente, os narradores atribuíam esse desejo de morrer a uma enfermidade melancólica, relacionada à situação de cativeiro: o desgosto causado pelo afastamento violento da África, a revolta pela perda de liberdade e as reações aos castigos pesados e injustos.”
Segundo a pesquisadora, a análise histórica da enfermidade reafirma a necessidade de desfazer explicações simplificadoras sobre os males de escravos, seja o banzo, seja a sua forma extrema, o suicídio, como decorrentes dos “desgostos provenientes do cativeiro”, fórmula usada no século XIX para encobrir a natureza violenta da relação entre escravos e senhores. Na história do banzo, então, se cruzam várias rotas da história: histórias da psicopatologia, do tráfico transatlântico de escravos e das doenças. “A enfermidade sempre aparece numa dupla posição: ela é uma entidade clínica, uma variação da nostalgia europeia nos trópicos, associada a outras doenças dos negros e, ao mesmo tempo, não se dissocia dos debates políticos sobre o cativeiro negro”, observa a pesquisadora. Segundo o Vocabulário, de Bluteau, de 1712, um jogo está banzeiro quando nem uma das partes ganha, uma indefinição enervante. “A história do banzo remete a um jogo assim, de escravos contra senhores, da vida contra a morte, em longa e tensa peleja.” Curiosamente, o conceito de banzo deve sua origem a uma formulação europeia sobre a nostalgia como doença. O ponto inicial dessa história é a dissertação do médico suíço Johannes Hofer (Basileia, 1678), De nostalgia, que descreve a “nostalgia”, palavra composta a partir dos radicais gregos nóstos (regresso) e álgos (dor física ou moral), como uma enfermidade a que os suíços seriam predispostos, conhecida como Heimweh (ou maladie du pays, na França, ou mal del corazón na Espanha). A melancolia seria uma indisposição por se estar ausente do lar que se transformava em enfermidade mortal.
No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a nostalgia tornou-se objeto de muitos trabalhos médicos e, aos poucos, a melancolia helvética foi rapidamente se tornando menos suíça: a elevada ocorrência dessa enfermidade nos exércitos de várias nações europeias tornara a patologia um objeto de especial interesse dos médicos militares (como o cirurgião do exército de Napoleão, Larrey), que relatavam verdadeiras epidemias de nostalgia. Até o célebre Phillipe Pinel dedicou--se ao tema na Encyclopédie méthodique. “Certamente, os postulados dos vários médicos militares e outros cientistas foram estendidos para os africanos escravizados. Assim, pode-se considerar o banzo como uma aplicação do conceito de nostalgia, desenvolvido na Europa”, diz a autora. Mas o primeiro ilustrado a analisar a questão sob o ponto de vista dos escravos e descrever o banzo foi o advogado português, nascido na Bahia, Luis Antonio de Oliveira Mendes, na sua Memória (1793) sobre a grande mortalidade dos africanos transportados ao Brasil, feita a pedido da Academia Real de Ciências de Lisboa. “Seu trabalho foi a primeira publicação em língua portuguesa a se ocupar da saúde dos escravos e é a principal fonte para as descrições do banzo no século XIX”, diz Ana Maria. Destacando as ligações entre as enfermidades mortais e o péssimo tratamento dado aos cativos, Oliveira Mendes assinala que, mesmo bárbaros, os africanos eram sinceros e constantes nos afetos. O banzo é apresentado como uma “gravíssima doença, causada pela exacerbação do sentimento de saudades”.
Essa imagem do banzo como fruto da crueldade do tráfico estendeu-se à primeira metade do século XIX e foi incorporada às narrativas de viagem, aos compêndios de medicina tropical e a teses de medicina. “É a vocação do banzo para ser um tipo de ‘enfermidade-argumento’, mobilizada na luta contra a escravidão”, lembra a autora. Sigaud, em Do clima e das doenças do Brasil (1844), lançado pela primeira vez em português este ano pela editora Fiocruz, considerava o banzo como uma doença mental, uma variante da nostalgia-melancolia desencadeada por causas morais tais como as saudades da África ou o ressentimento por castigos injustos. Já Martius, em Natureza, doen­ças, medicina e remédios dos índios brasileiros (1844), faz uma comparação entre o banzo do negro e do índio, afirmando que em ambos a melancolia reina como causa da morte, com a ressalva de que os negros pareciam sentir mais do que os indígenas os sentimentos dolorosos, já que estes últimos seriam frios e distantes em oposição aos africanos, emotivos e passionais. Joaquim Manuel de Macedo, em sua monografia sobre a nostalgia, escrita em 1844 (o mesmo ano da publicação de A moreninha) como tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para a obtenção do título de doutor, considera o banzo como uma moléstia mental originada das saudades da pátria, tendo como sede o cérebro. “Identificado com a classe senhorial, o escritor romântico não demonstra simpatia alguma pelos escravos, mas pensava que a nostalgia dos negros merecia ser estudada, pois a considerava como potencial ameaça à economia nacional”, relata a pesquisadora. Além dos três, outros estrangeiros trataram da questão da morte voluntária entre escravos no século XIX: Debret, Henry Koster, Rugendas, Thomas Ewbank, Robert Walsh, F. Dabadie, entre outros. “Depois desse interesse, o banzo permanecerá quase adormecido até os anos 1930 e 1940, quando os chamados estudos afro-brasileiros o recolocaram como potencial objeto de investigação. Ele será tomado como algo real, uma doença um pouco misteriosa, mas sem muita problematização”, conta a autora. 
Reprodução do livro rio de janeiro - Cidade Mestiça
Lar - Surge mesmo uma nova etimologia para a palavra: banzo seria ligado ao quimbundo mbanza, aldeia, e assim significaria a “saudade da aldeia” e, por extensão, do lar. “A origem africana da palavra me parece um pouco incerta. No Vocabulário, de Bluteau, por exemplo, a palavra “banzar” aparece como a ação de ‘pasmar com pena’ e “banzeiro” seria algo ‘inquieto, mal seguro’. Há quem acredite na origem portuguesa da palavra.” Em 1933, o conceito reapareceu nas páginas finais de Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, cuja visão marcou os relatos modernos da palavra: “Não foi de todo alegria a vida dos negros. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se. O banzo, a saudade da África, deu cabo de muitos. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas”, escreveu Freyre. Em 1939 começaram a surgir visões médicas da moléstia, como a do parasitologista Manoel Augusto Pirajá, que afirmava ser o banzo uma forma da doença do sono, a tripanossomíase africana, hipótese descartada atualmente. “Uma proposta a se considerar é a do psiquiatra Álvaro Rubim de Pinho, da Faculdade de Medicina da Bahia, exposta em Aspectos históricos da psiquiatria folclórica no Brasil (1982). Segundo ele, o banzo seria aproximado das chamadas ‘síndromes de campo de concentração’, diz a autora. O modelo é multicausal: o mal dos escravos seria um quadro em que se superporia um estado mental depressivo (característico de situações de terror, fome, confinamento etc.) a sintomas decorrentes de acentuada carência nutricional e de vulnerabilidade a doenças graves, várias das quais seriam as responsáveis pelos sintomas físicos e mentais do banzo.”
A produção historiográfica dos anos 1960 e 1970, contestando o que se chamou de “mito da escravidão branda”, preconizado por Freyre, enfatizou o caráter violento das relações entre senhores e escravos e deu nova acepção ao banzo. “Estudos desse período associam atos como suicídios, homicídios e agressões físicas à excessiva carga imposta pelo cativeiro e para alguns autores (como Alípio Goulart em Da fuga ao suicídio, de 1972, ou Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, de 1962) eles eram evidentes manifestações de rebeldia, das poucas facultadas aos escravos. Os suicídios seriam sinais de rebelião individual, assim como os quilombos e as insurreições, de rebeldia coletiva”, explica a pesquisadora. Para ela, porém, seja na perspectiva de Freyre, seja nesta, mais engajada, se deu pouco espaço aos fatores subjetivos envolvidos nas ações dos sujeitos históricos. Assim, o suicídio cativo pode ser visto também, mas jamais unicamente, como forma de protesto ou fuga da situação de cativeiro, sempre considerando a complexidade da experiência do cativeiro e a capacidade humana de descobrir formas de viver em situações adversas. “Atribuir a motivação para a morte apenas à condição cativa é uma abordagem simplista. Os atos suicidas são manifestações extremas que não podem ser reduzidas a uma explicação única, seja ela sociológica, antropológica ou psicopatológica”, assegura o historiador Saulo Veiga Oliveira, que analisou a questão no artigo “O suicídio de escravos em São Paulo”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. “Basta ver que o alto índice de suicídios entre escravos nas últimas duas décadas da escravidão é, em geral, atribuído aos ‘desgostos do cativeiro’, como reação à condição servil. Mas há muitos outros motivos: problemas com a Justiça ou o medo de castigos impostos pelo senhor.”
Assassinatos - “O índice de ‘mortes voluntárias’ entre escravos, quando comparado ao de homens livres, era duas ou três vezes mais elevado e, em geral, atribuído ao banzo”, afirma o historiador Renato Pinto Venâncio, da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica (Editora Campus). “Mas, como todo testemunho do passado, isso deve ser lido com olhos críticos: o registro de suicídio pode encobrir assassinatos praticados por senhores. Isso não implica diminuir o banzo como uma das expressões trágicas da loucura comum a milhões de pessoas vítimas do tráfico de escravos. A divulgação desse sofrimento nos jornais deve ter contribuído para a formação da sensibilidade abolicionista na sociedade imperial. Daí se entender o banzo como uma forma não intencional de protesto político, um exemplo primário de luta pela não violência.” Os números esconderiam outras motivações. “Os homens livres ocultavam seus casos procurando evitar sanções morais e religiosas, que impediam o sepultamento em cemitérios, o que pode explicar o número elevado de mortes de cativos”, explica o historiador Jackson Ferreira, da Universidade Federal da Bahia e autor do artigo “Por hoje se acaba a lida: suicídio escravo na Bahia (1850-1888)”. “Os atos suicidas foram mais que expressão e mecanismos de desespero, mas formas de negociar melhores condições, de resistir às condições de cativeiro ou libertar-se dele, abandonando definitivamente esta ‘terra de vivos’, como escreveu o escravo Timóteo em sua nota de suicídio.”
Ana Maria Oda está pesquisando atualmente o curioso “suicídio por ingestão de terra”, citado com frequência por viajantes, no projeto Geofagia e escravidão, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e vinculado ao Grupo de Pesquisa Escravidão, Raça e Saúde, sediado na Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. “A pica (alteração do hábito alimentar que inclui a ingestão de terra ou barro – a geofagia –, de cal, madeira etc.) é interpretada como uma deliberada ação em direção à morte, um método de suicídio lento dos negros escravos”, diz a pesquisadora. Debret retratou escravos com máscaras de ferro colocadas para evitar a prática. “A geofagia como suicídio não se sustenta. Não se determinaram as suas consequên­cias sobre a saúde, más ou boas.”
http://racismoambiental.net.br/2010/06/a-saudade-que-mata-pesquisa-discute-a-polemica-questao-do-banzo-como-nostalgia-mortal-dos-escravos/

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A Guerra do Chaco (1932-1935)

A origem do conflito remonta desde o tempo colonial entre a Bolívia e o Paraguai, devido "a descoberta de petróleo no sopé dos Andes". As fronteiras coloniais, era uma questão que não estava claramente estabelecidas, o que as disputas de territórios, nem sempre fora solucionada pela negociação diplomática. Tanto a Bolívia como o Paraguai diziam ter direito a região do Chaco, assim como os interesses imperialistas das companhias petrolíferas Standard Oil e Shell.

A região do Chaco está localizada na parte central da América do Sul. O Chaco é uma região em parte árida, em outra parte coberta pela vegetação de bosques, extensiva e praticamente desspovoada. Território plano, tendo como estações uma chuvosa e outra quene-seca.

Foram feit negociações diplomáticas, que resultaram na assinatura de vários tratados ajustando as fronteiras do Chaco entre Paraguai e Bolívia. Mas, "os tratados de Quijarro-Decoud (1879), Tamyo-Acerval (1887) e Ichaso-Benitez (1894) não foram cumpridos".

O Chaco representava tanto para a Bolívia como para o Paraguai uma questão litigiosa, que daria margem a recuperar a dignidade nacional aviltada em humilhantes derrotas externas. O Paraguai vencido pela Tríplice Aliança em 1870, sofrera grandes perdas. A Bolívia, por sua vez, perdeu mais da metade do seu território, assim como todo o litoral.

O acirramento pela disputa do Chaco vai se tornar mais intenso com o descobrimento do petróleo. A Bolívia faz concessões a Standard Oil Co., em 1920, uma vez que considerava necessário possuir o território do Chaco. Da mesma forma fez o Paraguai, que cedeu concessões a uma outra companhia a Shell.

O desenvolvimento de petróleo na região do Chaco colocou o problema do escoamento da produção que só poderia ser feito via Rio Paraguai, já que a Bolívia era um estado sem acesso ao mar. Portanto, "a questão se agravava porque a Royal Dutch-Shell, concorrente da Standard, dominava regiões meridionais do Chaco e impedia a passagem da rival".

Em função dessa provocação, há uma interferência do Chile que encoraja a Bolívia a não abrir mão de suas pretensões, pois via com interesse o choque entre bolivianos e paraguaios e do outro lado a Argentina, que por sua vez estimulava o Paraguai, já que tinha grandes interesses econômicos na sociedade guarani.

A partir deste momento, tanto a Bolívia como o Paraguai, já se haviam engajado nos preparativos finais de uma guerra julgado inevitável. Os gastos militares cresceram, sendo preciso fazer empréstimos no exterior. A Bolívia tinha uma certa vantagem sobre o Paraguai, uma vez que dispunha de ampla organização militar, de abundantes recursos financeiros, de um exército mais numeroso e mais bem armado que o Paraguai.

Quando começou o confltio, os generais bolivianos cometeram um grande erro. Convocaram as tropas de elites do altiplano. Em função do ar ser rarefeito, os soldados bolivianos não se adaptaram ao clima quente do Chaco, o que possibilitou uma grande baixa nas tropas boliviana e consequentemente sua derrota.

Em 1935, a Liga das Nações criada em Buenos Aires, tendo como representantes Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e Estados Unidos, tenta apaziguar o conflito. Mas, só em 1938, os dois países firmaram um Tratado de Paz, onde o Paraguai ficou com a maior parte do território disputado, ficando a Bolívia com parte apenas da planície do Chaco.

Na prática a vencedora foi o Paraguai, porém o petróleo paraguaio ficou sob o controle da Standard Oil Co., através de um contrato assinado com o governo paraguaio, que permitiou a tal companhia, o controle do petróleo até 2006, ano em que era encerrado o contrato, voltando o controle para o governo paraguaio.

Ao terminar a guerra, o Paraguaio e a Bolívia estavam mais dependente do capital estrangeiro, principalmente o norte-americano. O conflito terminou com "um saldo de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios mortos".


Referência Bibliogáfica:
AQUINO, Rubim Santos Leão de, ett alli. História das Sociedades Americans. Rio de Janeiro: Ao Livro
        Técnico, 1990.

 

O velho Salustiano

Nesse lugar escuro, mal iluminado, reinava o cheiro acre da agonia...  Respirando o odor da morte, algo sombrio, parecia que os dias eram mais longos e a vida mais curta. Aquele velho, coroado, de cabelos brancos ficava mudo e se fazia chorar diante da estupidez dos algozes. Olhando com avidez as paredes nuas, denunciava o inferno na alma daqueles homens rudes. Sobre o olhar atento do torturador, o ano não passava de uma sucessão dos dias agitados.

A luz negra que penetrava o antro subterrâneo da repressão aumentava seu suplício entrecortado pela violência gratuita dos desejos mais violentos, onde "a lei e a força ainda reinavam". Como pensar esse imenso país, onde a justiça era feita para castigar os espíritos livres? Separado de sua mulher e filhos passava os dias sobre uma ameaça visível, percebida no ar desbotado das ruas; aproximando lentamente os movimentos obscuros da noite.
Aquele mundo brutal de gritos revelava, de modo ávido, longamente o desejo de viver... Naquela obscuridade onde o tédio, o cansaço e o calor que sempre habitara conservava as imagens de sua infância. O tempo da juventude que passava repentinamente aumentava seu apetitie de viver. Apesar do corpo decrépito e cansado, ele, chorava desesperadamente. O pranto denunciava o aniquilamento daqueles que substancialmente sustentaram a duras penas o desejo de liberdade. Onde a força do "ordem tórrida" fosse quebrada com um golpe só e para sempre. Aquele imenso vazio, fechado e restrito às vezes chegava assumir uma dimensão trágica. Salustiano, com os olhos tristes, trazia consigo um "sentimento condoído". Mas, o que ficou foi uma amizade contínua, seus gestos nobres que desfila em minhas lembranças o total valor de nossa camaradem.

A nossos filhos, o que  dizer do passado, do país... Salustiano, tivera sua gênese marcada pela não aceitação da autoridade constituída, do poder central. Ávido pelo anseio de conviver, era contrário à ordem estabelecida...

À noite chega. Ouvem-se ao longe tiros... Para sempre estavamos separados. Porém, na luz leve da manhã, por entre as cores brilhantes das flores escorre o orvalho da madrugada fria.


Por Lima Júnior...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010


Campos de Concentração no Ceará


No início do século 20, no Ceará, os poderes públicos estadual e federal criaram campos de concentração para evitar que flagelados famintos fugindo do sertão semi-árido chegassem a Fortaleza.
“E você tem visto muito horror no campo de concentração?”, pergunta o sertanejo Vicente a Conceição, personagens do romance O Quinze, da escritora Rachel de Queiroz. Os dois conversam não sobre as prisões nazistas construídas durante a Segunda Guerra Mundial, ou seja, quase três décadas depois. O diálogo diz respeito aos currais erguidos no Ceará pelos governos estadual e federal para isolar os famintos da seca de 1915, considerada uma das mais trágicas de todos os tempos no Nordeste.

O objetivo dos campos era evitar que os retirantes alcançassem Fortaleza, trazendo “o caos, a miséria, a moléstia e a sujeira”, como informavam os boletins do poder público à época. Naquele ano, criou-se o campo de concentração (era assim mesmo que se chamava) do Alagadiço, nos arredores da capital cearense, cenário do livro de Rachel, que chegou a juntar 8 mil esfarrapados, que recebiam alguma comida e permaneciam vigiados por soldados.

A segregação dos miseráveis era lei, mas chegou um momento em que o flagelo em massa era tão chocante, com uma média de 150 mortes diárias, que o governo do Estado ordenou, em 18 de dezembro de 1915, como contam os arquivos dos jornais da época, a dispersão dos flagelados, ou “molambudos”, como eram também conhecidos.

Segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Vida e Morte no Sertão, durante a seca de 1915 teriam morrido pelo menos 100 mil nordestinos. Outros 250 mil migrantes para escapar da “velha do chapelão” – como a fome era conhecida no imaginário do semi-árido.

O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um antecedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores que viviam a ilusão, importada de Paris, de urbanismo e civilidade. No livro A Fome, o mais consistente relato sobre o cenário de 1877 nas ruas da capital, o cientista e escritor Rodolfo Teófilo assim descreveu o que viu: “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! Os que têm rede, vão nela, suja, rota, como se acha; os que não têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”.

Memórias do horror.

O ano da graça de 1915, relatado na ficção de Rachel de Queiroz, sertaneja da fazenda Não me Deixes, no município de Quixadá (CE), seria apenas o ensaio da segregação estatal dos miseráveis. Em 1932 é que o modelo de isolamento iria vingar para valer. Na “seca de quinze” – como era chamada a estiagem – ainda não existia sequer a famosa “indústria da seca”, como se convencionou chamar a ajuda do poder federal às oligarquias nordestinas – diante das ameaças de saques e violência das legiões de famintos, os grandes proprietários de terra sempre chantagearam o governo federal, principalmente a partir dos anos de 1930, alocando recursos para a região que na maioria das vezes acabavam se revertendo em benefícios das próprias elites.

“De longe eu sentia o cheiro de podridão, chegava a tapar as ventas. Era tão forte o fedor que é como se eu o sentisse hoje, mesmo eu estando com a memória fraquinha, fraquinha”, diz Manuel Conceição Rodrigues de Sá, 87 anos, um rapaz de 15 anos durante a seca braba de 1932. Hoje, ele mora no subúrbio de Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero, personagem que já era celebrado como santo naquele tempo, pelas levas de famintos que buscavam por sua bênção. Manuel morava, então, n o município de Serra Talhada, em Pernambuco. Trabalhava como tropeiro – tocava burros com carregamento de cachaça dos engenhos da região do Cariri, no sul do Ceará, para municípios de Pernambuco e da Paraíba. “Era num sítio ali perto do Crato, só vi uma vez de perto o campo de concentração, nunca mais tive coragem de passar junto. Pense num desmantelo! Gente apodrecendo de verdade, pareciam uns urubus quando o governo mandava comida”, afirma o ex-mascate.

O cearense do Cariri Miguel Arraes de Alencar, nascido em dezembro de 1917, na cidade do Araripe, governador de Pernambuco por três mandatos, guarda também lembranças do campo de concentração do Crato, onde morou sua família. “A seca braba de 32 é muito forte em minha memória. Um dia, quando ia estudar, me deparei com três homens presos. Eram flagelados do curral da concentração. Foram presos como desordeiros, só porque ficaram revoltados com as injustiças na distribuição de comida por lá”, afirmou Arraes em conversa com este repórter, em 2002. “É uma lembrança que guardo para sempre, as histórias vindas de lá eram um horror danado.”

Pelo campo de concentração do Crato passaram cerca de 65 mil pessoas durante aquela estiagem. Ali, o governo prometia comida, água, assistência médica e oferta de trabalho. Pouco disso, no entanto, acontecia. Não havia água tratada, nem comida para todos e muita gente morria de fome ou doença e era sepultada ali mesmo. O campo se tornou um foco de tudo o que é infecção. Em alguns dias, o número de mortes de famintos alcançava a marca de 200. Há registros de pelo menos outros cinco currais no estado do Ceará, localizados em Quixeramubim, Senador Pompeu, Cariús, Ipu, Quixadá e o último nos arredores de Fortaleza, como derradeira tentativa de evitar que os famintos convivessem com a população da capital

“Eram locais para onde grande parte dos retirantes foi recolhida a fim de receber do governo comida e assistência médica. Dali não podia sair sem autorização dos inspetores do campo. Havia guardas vigiando constantemente o movimento dois concentrados. Ali ficavam retidos milhões de retirantes a morrer de fome e doenças”, diz a historiadora Kênia Rios, da PUC-SP. As estatísticas oficiais, que não conseguiam abarcar todos os alistados nos “currais”, dão conta de 73.918 “molambudos” nas seis áreas de confinamento – 6.507 em Ipu; 1.800 em Fortaleza; 4.542 em Quixeramubim; 16.221 em Senado Pompeu; 28.648 em Cariús e 16.200 no Crato, conforme uma das melhores fontes sobre o assunto, o livro Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, de Kênia Rios.

Um sobrevivente da segregação é Antônio Siqueira da Silva, de 90 anos, que tinha 18 anos quando foi “jogado” com a família – pai, mãe e mais 12 irmãos – no “curral dos flagelados” do Crato. A família havia mudado do município de Quebrangulo, terra do escritor Graciliano Ramos, para Juazeiro do Norte, cidade hoje emendada ao Crato, em 1930. “A gente veio por causa dos milagres do meu padim Ciço. Só se falava nas obras do “meu padim” por esse mundão todo afora. Ai meu pai pegou a penca de menino, botou em cima dos burros, e chegamos aqui em Juazeiro, pois lá nas Alagoas não tinha mais como viver que preste”, diz Silva, em depoimento para o projeto Nova Geografia da Fome, do Centro Cultural Banco do Nordeste. “Chegando aqui o meu padim nos botou lá no sítio do beato Zé Lourenço, onde tinha muita fartura. O mundo todo sem nada para comer e o beato lá dando de comer a todo mundo, até irrigação já tinha.”

Seguidor do padre Cícero, Lourenço (1872 – 1946), nascido na Paraíba, chegou a abrigar cerca de mil pessoas no começo dos anos de 1930. Conhecida como o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a comunidade foi destruída e bombardeada – a primeira vez que as Forças Armadas usaram aviões para um massacre no Brasil – em 1937, por ordem do ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, durante o governo de Getúlio Vargas. O poder central, insuflado pelas autoridades cearenses, temia que o beato pudesse transformar o seu vilarejo em mais um Canudos, episódio que ainda assombrava os militares. No massacre, teriam morrido cerca de 700 pessoas. Lourenço escapou, fugindo pela Chapada do Araripe. Doente, morreria nove anos depois, em Exu (PE), município nas cercanias do Crato.

“O sítio do beato foi ficando cheio de gente demais, ai meu pai achou melhor a gente escapar da fome lá no “curral dos flagelados”, pois o governo prometia muita esmola por lá”, diz o sobrevivente do campo de concentração Antônio da Silva. “Mas quem disse que as esmolas chegavam? Lá perdi foi seis irmãos, de fome braba. Eu mesmo só escapei porque fugi com o resto, de madrugada, ainda lembro como se fosse hoje. Era uma catinga tão feroz, meu filho, que nem dava pra dormir direito. E os urubus em cima, querendo arrancar as tripas dos falecidos.”

A história das secas que castigam a população do Nordeste desde pelo menos 1877, deixou um rastro de tragédias e mortes assombroso. Nunca foi feito um levantamento a respeito dos números de nordestinos que perderam as vidas por causa da fome nestes períodos. Os levantamentos parciais, no entanto, são assustadores. Somente entre 1877 e 1913, portanto ainda sem os números da seca de 1915, o governo federal, por intermédio do IOCS estimava que 2 milhões de pessoas haviam morrido em consequência da miséria nas estiagens. Pouco mais de 100 anos depois, a equipe do livro Genocídio do Nordeste (organizado pela Comissão Pastoral da Terra e o Ibase, entre outras organizações) repetiu o desafio de contar as vítimas da seca e chegou ao número de 3,5 milhões de mortos somente no período entre os anos de 1979 e 1984.


Fonte: Aventuras na História
Por Xico Sá – Design Débora Bianchi, em 02 de junho de 2008.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010


Caldeirão e "A Cidade do Paraíso"

 

Na História do Brasil e do mundo, muitos são os exemplos de movimentos religiosos que tiveram um final trágico. Líderes e fiéis de vários desses movimentos morreram vítimas de repressão governamental, de sacrifícios efetuados em rituais ou suicídios e imolações coletivas. Alguns dos casos mais marcantes e conhecidos da História do Brasil são os de Canudos (1893-1897), no interior da Bahia e do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina. No entanto, muitas outras são as situações em que a fé do povo e liderança carismática de um beato, pastor ou pregador levou centenas de pessoas a participarem de um projeto de construção de uma sociedade diferente e por assim dizer alternativa.
No sertão nordestino do final do século XIX e início do século XX, fatores como o mandonismo, o coronelismo e as constantes secas foram elementos que contribuíram para a ampliação do número de excluídos e que se tornam elementos constitutivos do surgimento de bandos armados (os cangaceiros) e do surgimento de líderes religiosos com uma pregação de salvação e de mudança de vida (Messianismo).

O Beato e o Circo dos Santos
Entre as décadas de 20 e 40 do século XX, na região do Cariri Cearense, mais precisamente na Chapada do Araripe, surge a figura do Beato José Lourenço; um devoto do Padre Cícero que teria sido enviado por este com a missão de acolher os fiéis que chegavam constantemente a Juazeiro.
Na fazenda Caldeirão da Santa Cruz, o Beato instituiu uma comunidade com o modo de vida austero. O centro da vida eram as celebrações religiosas, as rezas dirigidas por  José Lourenço e o trabalho, com a maioria das pessoas se dedicando à agricultura. A comunidade levava uma vida igualitária e todos podiam trabalhar a terra. Os bens produzidos eram partilhados entre todos. O trabalho era visto como um meio de salvação e as regras eram rígidas. Com a morte do Padre Cícero, o número de fiéis que acorreram para Caldeirão aumentou significativamente, fato que chamou a atenção das autoridades para a fazenda, o Beato e suas atividades.
Entre 1936-37, o Caldeirão atingia o ponto máximo de sua existência e a comunidade preparava a construção de uma igreja, uma melhor distribuição das moradias (com a abertura e organização de ruas) e também a formação de uma escola de educação básica, que seria possível com a chegada de três professoras.
A Campanha contra o Caldeirão e o Beato José Lourenço
No mesmo período a campanha difamatória contra o Beato e a comunidade ocupou mais espaço na imprensa do Ceará como se pode ver nesta nota do Jornal o Povo:
"Usam os penitentes do beato José Lourenço, sem exceção, homens, mulheres e crianças, ordinária roupa preta, tinta com lama, que exala insuportável mau cheiro. Quase todos possuem uma espingarda de caça e garrunchas e alguns revólveres...
Não é possível ocultar o perigo que acomete este ajuntamento selvagem em lugar deserto e despoliciado como a Serra do Araripe, não sendo de estranhar que dentro em breve surjam roubos e tropelias outras praticadas por aquele bando de inconscientes de quase mil indivíduos, atualmente vagabundos e ociosos. Por isto julgamos prestar grande serviço à nossa terra dando notícia dentro das fronteiras do nosso município desse cancro social... (O Povo, 12-05-1937 In: Cordeiro, 2008).
Apoiando-se nas notícias divulgadas por uma imprensa que pouco conhecia a realidade da comunidade do Caldeirão e amparados pelo regime de exceção do Estado Novo, uma união que incluía fazendeiros, religiosos e políticos planejou o fim da experiência vivida naquele lugar. O desejo de por fim às atividades da comunidade era comum aos grupos que detinham o poder na região e as razões para isso estavam ligadas à economia, ao poder político e ao poder religioso. Entre estes motivos podem ser mencionados: O medo dos fazendeiros de perderem sua mão-de-obra para o José Lourenço e a comunidade do Caldeirão, as ambições da Igreja Católica tradicional que, supostamente, cobiçava as terras da comunidade e não compreendia as manifestações do catolicismo popular, e o temor das elites políticas que suspeitavam que o movimento era comunista (vale lembrar que os fatos são próximos à Intentona Comunista de 1935 e ao Plano Cohen de 1937).
Por fim, 1937, o governo do Ceará decide pela invasão do local que resulta na morte de várias pessoas (inclusive mulheres e crianças). No ataque, segundo Cláudio Aguiar, até aviões foram utilizados, algo até então sem precedentes na América Latina. José Lourenço consegue escapar com alguns fiéis e se refugia numa fazenda adquirida no estado de Pernambuco. Os remanescentes do Caldeirão vivem boa parte do tempo às escondidas, temendo as investigações, prisões e mortes efetuadas no Ceará e que se estenderam por um bom tempo. Em 1946 José Lourenço falece e o movimento perde força por falta de uma liderança expressiva, o que provoca a dispersão dos seguidores e o fim do projeto de construção de uma comunidade coletiva, mesmo com a tentativa de José Senhorinho e de Quinzeiro de retomar à vida na Fazenda Caldeirão.

Atualidade
Os fatos ocorridos na Chapada do Araripe no início do século XX vem se tornando tema cada vez mais frequente em pesquisas e publicações. O exemplo daquela comunidade mostra um quadro de exclusão social e de enfrentamento de forças pertencentes aos setores mais populares de um lado e do outro lado os grupos que mantém o poder. Também é possível notar como a falta de entendimento sobre os movimentos populares e a ausência de diálogo por parte daqueles que estão no poder podem gerar uma verdadeira catástrofe.
Por último cabe notar que, na sociedade atual, ainda se pode ver alguns elementos que remontam a características do Messianismo muito embora a forma de atuação e os meios sejam diferentes.

 Saiba mais:
, em 12 de março de 2010.

A METÁFORA DO PRECONCEITO E AS CONOTAÇÕES DA PALAVRA "NEGRO"


Será que isso é “coisa de pele”?

Em uma sociedade preconceituosa, o negro é visto como ser inferior, primitivo, retardado, delinqüente, perverso, desonesto, tolo, possuidor de maus instintos, sujo, irresponsável, preguiçoso, incapaz, etc. Esses preconceitos tornam-se traços semânticos das palavras preto/negro que vão sendo reproduzidos em inúmeras metáforas que utilizam essa cor.

As metáforas que utilizam signos que representam a cor negra, introjetam inconscientemente até mesmo no falante de afro-descendência o preconceito racial/social. Essas metáforas fazem parte de nosso sistema conceitual e seu uso intenso faz com que o falante incorpore, e passe a considerar como seus, os valores preconceituosos que permeiam a linguagem.

A interpretação da metáfora está ligada às idéias de denotação e conotação, ou seja, à significação com valor REFERENCIAL e à significação associada a valor EMOCIONAL. Assim:

“O dia hoje está negro” teria como sentido denotativo um dia sem sol, com nuvens escuras e como sentido conotativo ou metafórico, um dia cheio de problemas, aborrecimentos ou tensões.

“Ele é um negro de alma branca” está produzindo um enunciado falso, pois não se atribui cor à alma. No entanto, a intenção da metáfora é dizer outra coisa, como, por exemplo, "ele é um negro que possui qualidades próprias das pessoas brancas".

"A situação está preta", descreve uma idéia real, mostra que alguma coisa não está bem, está adversa, ruim, etc. A idéia implícita "negro é ruim, adverso", no entanto, é falsa, preconceituosa, introjetada em nossas mentes, como se fosse um atributo da palavra negro.

“Isso é trabalho pra negro” enfatiza-se aí a escravidão, a desigualdade, a exclusão e o racismo através da palavra negro.

“O diabo não é tão preto como se pinta” associa a palavra preto à figura e ao comportamento demoníaco.

“A fome é negra” utiliza a palavra "negro" para enfatizar o desespero e a desolação com o problema da fome.

Vocabulário que carrega preconceitos

câmbio negro: comércio ou transação ilegal.

mercado negro ou câmbio negro: comércio ilegal.

prejuízo preto: prejuízo imenso.

caixa-preta: falta de transparência.

lista negra: relação de coisas ou pessoas consideradas prejudiciais.

humor negro: humor que choca pelo uso de elementos mórbidos ou macabros

magia negra: bruxaria.

peste negra: doença que assolou a Europa na Idade Média.

ovelha negra: pessoa ou entidade que se destaca pelo mau procedimento.

besta negra: inimigo, problema de difícil solução.

asa negra: pessoa que prejudica ou embaraça um grupo com freqüência.

língua negra: vala que despeja esgoto no litoral ou nos mananciais.

mancha negra: vergonha.

lado negro: lado ruim, negativo.

Texto integralmente extraído de:
http://www.uniblog.com.br/nacoeseaculturadacor/87446/a-metafora-do-preconceito-e-as-conotacoes-da-palavra-negro.html

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Olga Benário

ÚLTIMA CARTA DE OLGA BENÁRIO À LUÍS CARLOS PRESTES E À FILHA



A última carta que Olga escreveu a Luís Carlos Prestes e а filha, ainda em Ravensbrück, na noite da viagem de ônibus que a levaria а morte em Bernburg, em 17 de outubro de 1936




"Queridos:



Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos. Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito de acordo com isso, mas logo nos entenderemos muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como o teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a ideia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte. Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo se não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver me dado a ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?

Querida Anita, meu querido marido, meu garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que me esforço para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanhã. Beijos pela última vez.

Olga."
 
 

domingo, 17 de outubro de 2010

As rabinas no Brasil colônia

Angelo Adriano Faria de Assis é doutor em História
pela Uninversidade Federal Fluminense.

Embora ainda hoje a existência de rabinas cause estranhamento em parte da comunidade judaica, no Brasil do século XVI algumas mulheres acabariam processadas pelo Santo Ofício, acusadas de divulgar o judaísmo.

Ana d'Oliveira era filha de Maria Lopes e de Mestre Afonso, cirurgião do rei que viera para o Brasil com o governador-geral Mem de Sá em 1558, sendo conselheiro dos criptojudeus nas questões religiosas e no respeito às tradições. Maria confessaria costumes judaicos, como lançar a água em caso de falecimento e guardar os sábados. Branca de Leão, sua filha falecida, era acusada por criticar o culto cristão de imagens, e de desrespeitar o crucifixo, arremessando-lhe certa vez um vaso de água.

Ana seria a única acusada -- durante a primeira visitação -- de praticar cerimônia tradicionalmente realizada por homens: circuncidava os filhos depois do batismo, "e uma vez fora vista uma criança sua ensanguentada, e fora ouvida chorar quando a circuncidava". Processada por judaísmo, receberia pena branda por ser nova quando delinquiu: abjuração de leve suspeita na fé, julgada pelo visitador, sem que o caso fosse enviado para Lisboa, mais "admoestação e penitências espirituais".

Outra a causar escândalo seria a octogenária Ana Rodrigues. Viera do reino como o marido Heitor Antunes, senhor de engenho e cavaleiro do rei, que dizia descender dos Macabeus, família de sacerdotes e militares judeus do século II a. C. Morto Heitor, a esposa o enterrara segundo a tradição judaica, em terra virgem.

A descendência dos Macabeus viraria escárnio sobre Ana e as filhas, chamadas de Macabéias. No parto de uma das filhas, clamando-se por Nossa Senhora, afirmou, "não me faleis nisso que não posso dizer!" Doente, suas filhas lhe mostravam um crucifixo, que ela rejeitava dizendo "tirai-o lá". Seria acusada da fazer bênçãos, orações e luto ao modo judaico, respeitar jejuns e interdições alimentares e guardar o sábado.

Apesar de comparecer para confessar as culpas, seria presa e enviada para Lisboa, onde morreria no cárcere. Anos depois, condenada, teve os ossos desenterrados, "queimados e feitos em pó em detestação de tão grande crime".

Mártires do judaísmo proibido, mulheres-rabi sofreriam pressões, ofensas e discriminações por lutar pelo resgate e continuidade da identidade de seu povo, criando e educando os filhos de acordo com os ideais da religião que acreditavam.

Fonte: Revista Nossa História, Ano 3, Nº 32, Junho 2006.


As eleições e a vitória da ideologia familista cristã


Alípio de Sousa Filho
Sociólogo, professor da UFRN. Editor da revista Bagoas.

           
            Mais uma vez, nas eleições nacionais, entra em cena a ideologia familista cristã. De natureza conservadora, para esta, a família somente pode ter existência na forma do casamento entre homens e mulheres, não se tolerando a ideia de família homossexual, homoafetiva ou gay, concretizada pela união de dois homens ou duas mulheres. Até mesmo o termo casamento vira objeto de disputa, não se admitindo aplicar a gays, lésbicas e transexuais. Não é por outra razão que, quando se fala da reivindicação ao reconhecimento dos casais lésbicos ou gays, insiste-se em precisar que se trata de reconhecimento de “união civil” de pessoas do mesmo sexo. O casal heterossexual não apenas seria o único modelo para o qual se tornaria possível falar de casamento, mas constituiria também a experiência única de composição da família, e esta devendo ainda assegurar que nela não se pratique o sexo antes e fora do casamento e o aborto. No familismo cristão, gays, lésbicas e transexuais são seres aberrantes, que não merecem a institucionalização de direitos, e o aborto é pecado e crime. No Brasil, leis e políticas que implementem direitos LGBT e políticas que contemplem o aborto são tomadas como afrontas à propalada família brasileira, e esta pretendidamente uma “família cristã”.  É bem fácil de enxergar que o familismo cristão é conservador e homofóbico. Nestas eleições, a atuação de bom número de igrejas cristãs tem constituído verdadeiro cerco em volta das candidaturas presidenciais.
            Para prejuízo geral, a luta por vencer tem tornado Dilma e Serra reféns dessa ideologia, produzida pela máquina das igrejas cristãs de todos os matizes. Em nome do pragmatismo político ou das estratégias do marketing, que colocam a ação política sob o signo da dicotomia maniqueísta ou do vale tudo, os dois candidatos rebaixam suas próprias visões pessoais e de seus partidos, pois, não é de se acreditar que pensem o que estão dizendo nas entrevistas, em seus programas políticos, cartas ou documentos que assinam. Fazendo concessões ao familismo cristão conservador, os dois, com poucas distinções, deixam a sociedade escravizada ao seu próprio obscurantismo, quando tinham o dever político de enfrentá-lo, desafiá-lo, contribuindo com avanços culturais, que, até aqui, a sociedade brasileira quase inteira ignora. E aqui vale destacar que, de minha parte, não se trata de tomar um ou outro candidato como vítima ou algoz, menos ou mais cúmplice da ideologia familista cristã ou até mesmo menos ou mais seu manipulador. Fora do maniqueísmo das paixões políticas (muito em alta no momento!) e da lógica empobrecida do pragmatismo (não é pragmático discutir temas para perder, melhor esconder posições e ganhar!) – formas autoritárias da política –, trato de chamar atenção para o dano político e cultural que se produz ao se perder a chance de enfrentar, mesmo com diferenças, o conservadorismo que amanhã atrapalhará o vencedor que pretenda emplacar transformações, e que já atrapalha avanços que a sociedade brasileira não pode mais continuar negando ao segmento LGBT e de mulheres, que, embora minorias políticas, são numericamente importantes segmentos sociais.
            Nessas eleições, por temor de enfrentar o familismo cristão conservador, a questão gay não aparece nos programas eleitorais de nenhum dos candidatos, não é discutida, e o tema do aborto virou motivo de chantagem, ingrediente eleitoreiro. O medo de enfrentar o poder eleitoral das igrejas conservadores (algumas com práticas que são verdadeiro terrorismo da palavra!) tem deixado os candidatos, neste segundo turno, inteiramente prisioneiros de posições acanhadas que só acanham a sociedade brasileira. Os discursos dos candidatos ou daqueles que os apóiam referem-se a esses temas como “coisas sem importância”, “baboseira”, “política do submundo”, “baixaria”, “questões secundárias”, entre outras expressões, revelando o quanto, em suas concepções, a política é compreendida como a esfera de coisas cuja importância não torna possível a ocupação com temas “menores” como os direitos civis de gays, lésbicas e transexuais ou a questão do aborto. Mesmo a alusão a que alguém seja gay ou lésbica é tratada como “acusação”, “calúnia”, numa clara revelação que se tem a homossexualidade como um atributo negativo. Do contrário, por que tomar como calúnia ou acusação a referência (verdadeira ou falsa) à homossexualidade? O modo de responder não deveria ser outro? Por que sentir-se “difamado” por alusão à suposta homossexualidade? Na tensão da disputa, perde-se o senso crítico e o senso comum vai ganhando a confirmação de suas representações, preconceitos...
            Não se torna mais possível que, no século XXI, dois importantes partidos como o PT e PSDB se permitam rebaixar seus programas, discursos e posicionamentos à vontade de religiões conservadoras que conduzem o país para o atraso cultural e político. Conciliar com a vontade das igrejas cristãs conservadoras e homofóbicas, em nome de pragmatismo político, é permitir que aqueles que hoje exigem “compromissos de campanha” contra o aborto e contra os direitos LGBT, e outros temas que incomodam, tornem-se amanhã, dentro e fora do Congresso Nacional, como cães de guarda da moral sexual vigente, os primeiros e mais ferrenhos opositores de posicionamentos e ações de governo favoráveis a políticas públicas e direitos que não podem mais continuar suspensos, negados, obstruídos, confiscados.
            Na disputa final, PT e PSDB deveriam dar lições de coragem política, enfrentando a ideologia familista cristã conservadora que faz com que a sociedade brasileira seja hoje uma das mais atrasadas em relação aos direitos LGBT e a questão do aborto. Mas, inversamente, assistimos os dois partidos com peças de marketing caricaturescas de “mães brasileiras”, “mulheres grávidas”, “valores sagrados”, “fé”, “família”, visitas a templos etc. Imagens e palavras de concessões ao familismo cristão conservador, numa clara alusão a posições anti-aborto e contrárias a qualquer defesa de direitos que incluam as reivindicações do segmento LGBT como casamento, adoção etc. Dilma acaba de assinar carta em que se compromete a nada fazer que “afronte à família”, mesmo diz que alterará o PLC 122 (que trata da criminalização da homofobia) nos pontos em que este seja “ameaça” à liberdade religiosa e de expressão (isto é, tenta acalmar os padres e pastores homofóbicos, que querem ter o direito de, em seus sermões, continuar maldizendo a homossexualidade e os gays e lésbicas) e que é “pessoalmente contra o aborto”. Por sua vez, Serra traz a figura da comovente “mãe” e sua solidária ideologia do “amor materno”, discurso subliminar contra o aborto, e, embora tenha assinado documento em que se posiciona favorável à “união civil” de homossexuais, declara que não é favorável ao “casamento”, assunto que seria das igrejas.
            Dilma e Serra deveriam ter a coragem de desafiar a ideologia familista cristã numa prova de coragem para governar uma sociedade que não pode ter no seu Estado um lugar de atuação de religiões, mas um espaço laico. Única possibilidade de elevar a própria esfera política à posição de esfera na qual não se toma posições baseadas em crenças ou critérios religiosos, mas a partir de critérios racionais, públicos e políticos. Todavia, escondidos nas razões do pragmatismo político-eleitoral e submetidos à ideologia do marketing, que, contemporaneamente, substitui a própria política, as duas candidaturas rebaixam seus propósitos e deixam-se derrotar por um familismo homofóbico e conservador que, qualquer que seja o resultado eleitoral, já pode comemorar sua vitória.

domingo, 10 de outubro de 2010

Fragmentos

O social é que nos orienta e regula a nossa conduta, estabelecendo normas e valores para as coisas. É verdade que vivemos uma época trágica, onde é visível a angústia infinita das almas livres. Mas, toda essa gente resiste a todas as chuvas e ao vento da vida diária...

Algo me faz pensar, que estamos submersos na terrível velhice (deste último século), que os anos imprime. Talvez, a humanidade esteja a espera de Prometeu, que desejou salvarmos da miséria dos homens.

A revelação dos dias nos mostra que na luminosidade das manhãs ou na opulência natural das noites, os homens terminam anulados pelo cotidiano. Onde, gotas de luzes e cores oferecem à alma um gozo desmensurado.

Por entre  ruas escuras caí o amor dos homens em fontes profundas. Eis, alí, o afã que cavalga o presente futuro. Corações endurecidos, sórdidos e velhos invadem os jardins, onde o vento das alturas desprendem açoites que condicionam em nós o abrasamento das fogueiras vivas.

Que brota da alma, um corpo febril, símbolo e expressão de si mesmo. Que desterra de cânticos sagrados, o bem e o mal. E, arrebanha da obscuridade da sombra noturna a natureza humana.

Criaturas que se entregam a loucura dos sacerdotes. Falsos sábios, que divulgam uma pseudo-sabedoria, que glorifica o eu e santifica a alienação. Assim, vejo, os homens submissos aos pés divinos, receberem na face o cuspe do bendito egoísmo.

A manhã que está oculta, a tarde que se descobre. Assim, nos arrastamos sobre duros ombros e somos tolhidos pela mormente cotidianidade. Uns ajoelham-se e deixam-se carregar pelas falsas promessas. Outros, resistem as palavras e aos valores estranhos.

O interior da luz é vicioso, cheio de nobres adornos, de bela aparência. Alma minha que se lança no olhar dos teus olhos. Que chora as lágrimas e os prantos alheios.

Com um facho de claridade caminho pelo passado, onde jogo dados com os deuses, na mesa divina da terra. É, esse o meu universo! No domínio dessa órbita persigo o tempo, onde não deixo escapar uma verdade fugidia. Porém, degusto, como do puro alimento da vossa ciência. Mas, dificilmente, "estenden-se em mim, tua negra ignorância".


Não quero ser hóspede de teu corpo, o que me atrai é a tua doutrina, que explica à própria a gênese da vida. A dor tem que morrer, pois a vida é um espetáculo, embora nos conduza às angústias cotidianas.

Atrás das formas e cores variadas, sou visto como um pensamento inefável, oculto e espantoso. Um cego que pede e dar esmola, mas que não enche sua sacola. Contemplo a escuridão e me curvo diante de um deus desconhecido, incógnito.


Setes olhos trespassa e perseguem-me. Arranca(m) torturas, me impõe suplícios. Funesto e encantador é teu riso colérico, que anuncia em pensamentos falsas verdades. Desse modo escuto uma voz que diz:
-- Quem és tu?
Exclamou, o velho sábio, dizendo tristemente:
-- Eu, sou um deus verdugo, cansado dos tormentos humanos.
Desviando o olhar para o céu, procuro a grandeza do brilho da luz. Os olhos marejam, procurando por entre os bosques lunares à singular humanidade. Ao longe, vejo, os homens como "insetos cegos voando sem direção".
Agora, o subúrbio é um mundo estranho, que já não existe para o centro -- urbano e capitalizado -- de sonhos e prazeres. Do lado de cá, toda àquela gente louva com cantos, odes e poemas um deus diminuto.

À pobreza do alto e baixo sertão está regada pela fome, miséria e analfabetismo.       Que oportunidade terão
àqueles de seguirem seus destinos? Triste verdade não proporciona o disfarce de tal situação. As esmolas que recebem são acondicionadas em pacotes distintos. De distantes paragens, desvalidas criaturas esbarram na contra-mão da vida retirada.

Por aí, além, morrem-se da seca, da morte matada... Dotara a natureza a sombra de um velho juazeiro, que naturalmente remove o óbice da secura dos ares.

Com lágrimas nos olhos o sertanejo aprecia espantado o velho torrão. Fugindo dos raios do sol, caminha lentamente por sobre a aridez da terra inóspita. Seus olhos brilham diante da profunda solidão. A pele luzidia contrastava com o suor que rolava pelo rosto evidenciando as marcas que a vida imprime. Mesmo turvas, clama aos céus pelas águas da chuva.

Por entre o crepúsculo, rompe a luz, um vulto humano que salta em órbitas, cujos olhos adornados pelos espaços vazios em estilhaços, em meio a patéticos anos, condiciona em negras cores a dureza e o peso da vida diária.

Figura humana que responde em silêncio. Como a morte, colhe o ímpeto que nos obriga a mergulhar na extrema solidão dessa dor profunda, desfigurando a luz da manhã e a fisionomia de todo homem, descrevendo em diferentes fases o desespero de criaturas inanimadas, cujas as mãos piedosas arrastam-se em busca de Deus.

Depois de longo e profundo silêncio, o velho sucumbiu... Velho Chicó, voz altaneira das terras longinquas, morrera suspenso na cruz por não suportar seu inferno e o amor pelos homens. De expressão dolorosa e sombria, aquele pobre homem de aparente palidez anunciava uma excessiva piedade, estava cansado do mundo dos homens.



Por Lima Júnior...

Texto dedicado a memória do primo-irmão Irapuã Batista de Sousa, tangerino de sonhos...

O Renascimento cultural europeu: acontecimentos e fatos

A Eurpa foi revitalizada, nos últimos séculos da Idade Média, pelo reaquecimento do comércio e pela agitação da vida urbana. A transição do feudalismo para o capitalismo foi, aos poucos, modificando os valores, as ideias, as necessidades artísticas e culturais da sociedade européia. Mais confiante em suas próprias forças, o homem moderno deixou de olhar tanto para o alto, em busca de Deus, passando a prestar mais atenção em si mesmo. O homem se redescobre como centro de preocupações intelectuais e sociais, como criatura e criador do mundo em que vive, tudo isso refletiu nas artes, na filosofia e nas ciências.

A construção de um novo modelo de homem -- É durante a Idade Média, que encontramos na Europa um tipo de sociedade onde as pessoas estavam presas a um determinado status que integrava a hierarquia social, servo ou senhor, vassalo ou susserano, mestre ou aprendiz. A fideliddade era a principal virtude dessa sociedade, na medida em que conformava cada pessoa dentra dessa estrutura estática, onde a mobilidade social era inexistente.
Coma a chegada da Idade da Moderna, os laços dessa estrutura de dependência social romperam-se, abrindo espaço para que o indivíduo pudesse emergir.

Os novos valores culturais -- Em substituição aos valores dominantes da Idade Média, a mentalidade moderna formulou novos princípios. Novas teorias como o Humanismo -- em vez de um mundo centrado em Deus (Teocêntrico), era preciso construir um mundo centrado no homem (Antropocêntrico), desenvolvendo uma cultura humanista. O racionalismo -- em  vez de explicar o mundo pela fé, era preciso explicá-lo pela razão, desenvolvendo o racionalismo, principalmente nas ciências. O individualismo -- em vez da ênfase no aspecto coletivo e fraternal da cristandade, era preciso reconhecer e respeitar as diferenças individuais dos homens livres, valorizando o individualismo, diretamente associado ao espírito de competição e à concorrência comercial.

A maneira moderna de compreender e representar o Mundo -- De modo geral, o movimento intelectual e cultural que caracterizou a transição da mentalidade medieval para a mentalidade moderna foi o Renascimento. Esse termo tem sua origem na própria vontade de  muitos artistas e intelectuais dos séculos XV e XVI de recuperar ou retornar a cultura antiga, greco-romana, que esmoreceu na Idade Média. É a partir dos renascentistas que o período medieval passou a ser rotulado como "Idade das Trevas", época de "barbarismo" cultural. Entretanto, essas rotulações correspondem, sem dúvida, a exageros dos renascentistas. Também podemo dizer que o Renascimento não pode ser considerado como um retorno à cultura greco-romana, por uma simples razão: nenhuma cultura renasce fora de seu tempo.

Assim, devemos:
"(...)interpretar com prudência o ideal de imitação dos antigos, proposto como o objetivo maior e mais sublime dos humanistas por Petrarca, um de seus mais notáveis representantes. A imitação não seria a mera repetição, de restos impossivel, de modo de vida e das circunstâncias históricas de gregos e romanos, mas a busca de inspiração em seus atos, suas crenças, suas realizações, de forma a sugerir um novo comportamento do homem europeu". (Sevcenko, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual/Ed. Unicamp, 1984, p.14).
O Renascimento é um fenômeno tipicamente urbano, que atinge a elite economicamente dominante das cidades prósperas. Caracteriza-se não apenas pela mudança na qualidade da obra intelectual, mas também pela alteração na quantidade da produção em sentido crescente, e entre os fatores que influenciaram o seu crescimento quantitativo, destacaram-se: o desenvolvimento da imprensa e a ação dos mecenas.



Por Gildson Souza e Lima Júnior/maio de 1997.