quarta-feira, 20 de outubro de 2010


Caldeirão e "A Cidade do Paraíso"

 

Na História do Brasil e do mundo, muitos são os exemplos de movimentos religiosos que tiveram um final trágico. Líderes e fiéis de vários desses movimentos morreram vítimas de repressão governamental, de sacrifícios efetuados em rituais ou suicídios e imolações coletivas. Alguns dos casos mais marcantes e conhecidos da História do Brasil são os de Canudos (1893-1897), no interior da Bahia e do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina. No entanto, muitas outras são as situações em que a fé do povo e liderança carismática de um beato, pastor ou pregador levou centenas de pessoas a participarem de um projeto de construção de uma sociedade diferente e por assim dizer alternativa.
No sertão nordestino do final do século XIX e início do século XX, fatores como o mandonismo, o coronelismo e as constantes secas foram elementos que contribuíram para a ampliação do número de excluídos e que se tornam elementos constitutivos do surgimento de bandos armados (os cangaceiros) e do surgimento de líderes religiosos com uma pregação de salvação e de mudança de vida (Messianismo).

O Beato e o Circo dos Santos
Entre as décadas de 20 e 40 do século XX, na região do Cariri Cearense, mais precisamente na Chapada do Araripe, surge a figura do Beato José Lourenço; um devoto do Padre Cícero que teria sido enviado por este com a missão de acolher os fiéis que chegavam constantemente a Juazeiro.
Na fazenda Caldeirão da Santa Cruz, o Beato instituiu uma comunidade com o modo de vida austero. O centro da vida eram as celebrações religiosas, as rezas dirigidas por  José Lourenço e o trabalho, com a maioria das pessoas se dedicando à agricultura. A comunidade levava uma vida igualitária e todos podiam trabalhar a terra. Os bens produzidos eram partilhados entre todos. O trabalho era visto como um meio de salvação e as regras eram rígidas. Com a morte do Padre Cícero, o número de fiéis que acorreram para Caldeirão aumentou significativamente, fato que chamou a atenção das autoridades para a fazenda, o Beato e suas atividades.
Entre 1936-37, o Caldeirão atingia o ponto máximo de sua existência e a comunidade preparava a construção de uma igreja, uma melhor distribuição das moradias (com a abertura e organização de ruas) e também a formação de uma escola de educação básica, que seria possível com a chegada de três professoras.
A Campanha contra o Caldeirão e o Beato José Lourenço
No mesmo período a campanha difamatória contra o Beato e a comunidade ocupou mais espaço na imprensa do Ceará como se pode ver nesta nota do Jornal o Povo:
"Usam os penitentes do beato José Lourenço, sem exceção, homens, mulheres e crianças, ordinária roupa preta, tinta com lama, que exala insuportável mau cheiro. Quase todos possuem uma espingarda de caça e garrunchas e alguns revólveres...
Não é possível ocultar o perigo que acomete este ajuntamento selvagem em lugar deserto e despoliciado como a Serra do Araripe, não sendo de estranhar que dentro em breve surjam roubos e tropelias outras praticadas por aquele bando de inconscientes de quase mil indivíduos, atualmente vagabundos e ociosos. Por isto julgamos prestar grande serviço à nossa terra dando notícia dentro das fronteiras do nosso município desse cancro social... (O Povo, 12-05-1937 In: Cordeiro, 2008).
Apoiando-se nas notícias divulgadas por uma imprensa que pouco conhecia a realidade da comunidade do Caldeirão e amparados pelo regime de exceção do Estado Novo, uma união que incluía fazendeiros, religiosos e políticos planejou o fim da experiência vivida naquele lugar. O desejo de por fim às atividades da comunidade era comum aos grupos que detinham o poder na região e as razões para isso estavam ligadas à economia, ao poder político e ao poder religioso. Entre estes motivos podem ser mencionados: O medo dos fazendeiros de perderem sua mão-de-obra para o José Lourenço e a comunidade do Caldeirão, as ambições da Igreja Católica tradicional que, supostamente, cobiçava as terras da comunidade e não compreendia as manifestações do catolicismo popular, e o temor das elites políticas que suspeitavam que o movimento era comunista (vale lembrar que os fatos são próximos à Intentona Comunista de 1935 e ao Plano Cohen de 1937).
Por fim, 1937, o governo do Ceará decide pela invasão do local que resulta na morte de várias pessoas (inclusive mulheres e crianças). No ataque, segundo Cláudio Aguiar, até aviões foram utilizados, algo até então sem precedentes na América Latina. José Lourenço consegue escapar com alguns fiéis e se refugia numa fazenda adquirida no estado de Pernambuco. Os remanescentes do Caldeirão vivem boa parte do tempo às escondidas, temendo as investigações, prisões e mortes efetuadas no Ceará e que se estenderam por um bom tempo. Em 1946 José Lourenço falece e o movimento perde força por falta de uma liderança expressiva, o que provoca a dispersão dos seguidores e o fim do projeto de construção de uma comunidade coletiva, mesmo com a tentativa de José Senhorinho e de Quinzeiro de retomar à vida na Fazenda Caldeirão.

Atualidade
Os fatos ocorridos na Chapada do Araripe no início do século XX vem se tornando tema cada vez mais frequente em pesquisas e publicações. O exemplo daquela comunidade mostra um quadro de exclusão social e de enfrentamento de forças pertencentes aos setores mais populares de um lado e do outro lado os grupos que mantém o poder. Também é possível notar como a falta de entendimento sobre os movimentos populares e a ausência de diálogo por parte daqueles que estão no poder podem gerar uma verdadeira catástrofe.
Por último cabe notar que, na sociedade atual, ainda se pode ver alguns elementos que remontam a características do Messianismo muito embora a forma de atuação e os meios sejam diferentes.

 Saiba mais:
, em 12 de março de 2010.

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