quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O último dos cangaceiros





O ex-cangaceiro Moreno com o historiador baiano João de Sousa Lima (Foto: blog do historiador João de Sousa Lima).


Lira Neto*


Leio no jornal: aos 100 anos, morreu Moreno, um dos últimos cangaceiros do bando de Lampião. Não sou de desejar a morte de ninguém, mas devo admitir que, nesse caso, sinto-me tentado a dizer: já vai tarde.

Quem dera tivesse ido embora com ele a ignorância cavalar de todos os sociólogos, historiadores, cineastas, jornalistas e escritores que, ainda hoje, por estupidez ideológica, ranço acadêmico ou ingenuidade histórica, insistem em glamourizar o cangaço.

O pernambucano Moreno - José Antônio Souto, no registro civil - era um facínora. Mas morreu paparicado, recebido com festa e como herói na cidade cearense de Brejo Santo, onde passou parte da adolescência até enveredar para a vida do crime e se escafeder para os cafundós da Paraíba.

Moreno matou 21 homens, segundo suas próprias contas. Há pouco, quando estava prestes a esticar as canelas, deu entrevistas nas rádios locais como uma celebridade, foi saudado por cantadores populares e abraçou a família sorridente, que não escondeu o orgulho pela notoriedade e pela fama de valentão do parente ilustre.

Uma miopia conceitual é responsável, em grande parte, pela mitificação desses bandidos que roubavam, seqüestravam, matavam, estupravam e viviam à sombra do coronelismo e do latifúndio.

Na década de 60 e 70 do século passado, tornou-se moeda corrente nas universidades a interpretação canhestra de que a violência imposta aos nordestinos por gente sanguinária como Lampião, Corisco, Azulão e outros celerados menos famosos como Moreno fosse uma resposta natural - e positiva - à violência social endêmica do sertão.

Os cangaceiros seriam, conforme tal viés, os Robin Hoods da caatinga. Ou, melhor dizendo, seriam "bandidos sociais" - para usar o termo então tomado emprestado ao historiador norte-americano Eric Hobsbawm, que conferiu certo verniz intelectual ao que, no fundo, nunca passou de um atestado de miséria teórica.

Lastreados em um marxismo mal lido e mal digerido, cientistas sociais brasileiros passaram a querer atribuir ao cangaço até mesmo certa nobreza de princípios e alguma justiça nas ações. Lampião passou a ser o rebelde primitivo, o justiceiro romanesco, o paladino dos fracos e oprimidos.

Bem antes disso, em 1935, a Aliança Nacional Libertadora já citava Lampião como um de seus inspiradores políticos. Trinta anos depois, Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, iria pelo mesmo caminho e, num surto de desvario histórico, chegaria a dizer que Virgulino Ferreira da Silva foi "o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e arbitrariedade".

Ora, como se o mesmo Virgulino não dispusesse de coiteiros poderosos, os coronéis sertanejos que lhe ofereciam armas, guarida e munição, em troca do serviço de milícia proporcionado pelo bando, o que garantia a inviolabilidade de seus domínios feudais.

Também data dos anos 60 do século passado um livreto de poucas páginas e de ideias ainda mais ralas. Superestimado durante muito tempo, "Cangaceiros e Fanáticos", de Rui Facó, tornou-se uma espécie de bíblia engajada para os "estudiosos" do tema, ao pregar que o cangaço era "um exemplo de insubmissão" e "um passo à frente para a emancipação dos pobres do campo".

Felizmente, uma bibliografia mais contemporânea devolve os cangaceiros a seu devido papel na história: o de bandoleiros carniceiros. É o caso de "Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil", de Frederico Pernambucano de Mello, arguto pesquisador de história social da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. A obra serve de providencial colírio desembaçador aos que ainda insistem, mesmo hoje, em enxergar Lampião através de lentes românticas.

Em um dos capítulos mais instigantes do livro, o autor expõe a tese do "escudo ético", ao desvendar a necessidade que os cangaceiros tinham de justificar aos próprios olhos - e aos olhos de terceiros - suas ações criminosas, sob o pretexto da lavagem da honra ofendida e do desejo de vingança.

Com efeito, no caso de Moreno, o cangaceiro centenário que acaba de morrer, o "escudo ético" seria proveniente da surra que ele levou da polícia na juventude em Brejo Santo, ao ser acusado - injustamente - do roubo de um carneiro. É o que nos conta a reportagem do jornalista Antônio Vicelmo, publicada neste mesmo Diário, na última quarta-feira.

Tão logo se viu livre da cadeia, Moreno teria matado o homem que o denunciou e que seria o verdadeiro ladrão do bicho. Pronto. Estava justificada, sob o abrigo de um providencial escudo ético, a entrada de Moreno para o cangaço. O que a partir daí passou a ser um meio de vida ilegal, violento e desonesto, estaria plenamente abonado.

Não há dúvidas de que o cangaço, com sua crônica interminável de atrocidades, truculências e selvajarias - que, de fato, só encontrava equivalente na ferocidade das volantes -, ainda seja capaz de fornecer material copioso para historiadores, jornalistas, escritores, cineastas e ficcionistas.

Afinal, paralelo ao regime de terror que infundiam, os cangaceiros também irradiavam fascínio com sua indumentária ostensiva, sua aura de implacáveis combatentes, seu cotidiano repleto de aventuras e perigos. Em uma terra em que a valentia, a macheza e a falta de polidez são considerados atributos positivos - e onde a "honra manchada" ainda desculpa o uso da violência - os cangaceiros tornaram-se, entre nós, os ícones máximos da audácia.

Quando estive recentemente na cidade potiguar de Mossoró, embasbaquei-me com o realmente impressionante Memorial do Cangaço, um dos orgulhos dos moradores do lugar, que fazem questão de mostrá-lo aos visitantes, com incontida vaidade. Segundo consta, Mossoró foi a única cidade nordestina a colocar o bando de Lampião para correr.

Contudo, no lugar de se exaltar a decantada resistência dos mossoroenses, tema de um painel fotográfico apenas secundário, a grande estrela do Memorial do Cangaço potiguar é o próprio Virgulino e sua companheira, Maria Bonita, cujas imagens aparecem em painéis gigantescos, de vários metros de altura.

Fico imaginando, daqui a algumas décadas, no Rio de Janeiro, quando alguém pensar em erguer um memorial à guerra contra o narcotráfico, se os painéis principais exibirão a imagem dos bandidos em tamanho gigante - e não das vítimas que eles fizeram com seu negócio sujo.




Fonte: Jornal Diriário do Nordeste, 10/09/2010*

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