quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A luta continua

"Em meio ao processo pós-moderno, alimentado pela cultura do individualismo, o resgate das tradições e saberes populares tornam-se imprescindíveis para a identificação do ser coletivo.

João Cabral de Melo Neto narrou a saga do retirante nordestino em Morte e Vida Severina. Mais importante do que a luta pela sobrevivência em meio à seca, à fome, à vida e à morte, a tentativa falha de se apresentar é essencial para compreender que todos os severinos são iguais. Iguais em tudo na vida.

Severinos são todos esses, nós, trabalhadores. Estes homens e suas cidades se parecem cada vez menos consigo mesmos. As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto ambicionou. Qualquer um entende as mensagens que o televisor transmite. A vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos".

Morte e Vida Severina

Severino, em busca de uma identidade
“O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.”

(João Cabral de Melo Neto – trecho de Morte e Vida Severina).


Texto adaptado da Carta Maior, 22/09/2010

www.cartamaior.com.br

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