domingo, 26 de setembro de 2010

Romeu Tuma e o Dops

Breve resgate 
Por Suzana Keniger Lisbôa

Romeu Tuma esteve presente no palco dos acontecimentos relativos ao desaparecimento dos presos políticos. Como Diretor do DOPS e, posteriormente, na PF, foi ele quem "arrumou" os arquivos do órgão antes de serem tornados públicos.
 
Há que considerar-se, além dos documentos que diretamente envolvem Romeu Tuma na rede montada pelos órgãos repressivos para acobertar os desaparecimentos políticos e as mortes sob tortura, de que o DOPS de São Paulo não foi um mero espectador das violências cometidas pelos órgãos de repressão política, mas um de seus braços principais. Basta, para tanto, lembrar o nome do famigerado Delegado Sérgio Paranhos Fleury, que fez do DOPS/SP, uma máquina de matar, competindo palmo a palmo com a eficiência assassina do DOI/CODI. (vejam as fotos de Fleury e Tuma no livro Autopsia do Medo, de Percival de Souza, como também a afirmação de que foi Tuma que indicou ao II Exército quem seriam os responsáveis pelo sumiço dos corpos - fls. 180).

Ali, no DOPS, estava Tuma – desde 1954, conforme declara, tornando-se seu diretor em 1977 e levando consigo para a Polícia Federal, em 1983, não só os arquivos que ajudara a organizar, mas também os torturadores ali lotados, tais como Aparecido Laertes Calandra – conhecido à época como “capitão Ubirajara” – e o delegado Davi Araújo dos Santos, ambos envolvidos diretamente em torturas e assassinatos de presos políticos, e outros certamente não descobertos por nós. 

As requisições de exames necroscópicos dos presos políticos, enterrados com nomes falsos ou verdadeiros, a maior parte delas marcada com um “T” em vermelho, eram todas enviadas ao DOPS, como também as fotos dos corpos, sendo que alguns dos envelopes de negativos do arquivo de fotos do IML, que encontramos vazios, contém a observação: “negativo enviado ao DOPS”. Tais fotos desapareceram com Tuma e Harry Shibata - do IML e do DOPS.

O “Xerife Tuma” cumpriu tão brilhantemente seu papel, que foi escolhido pelo General Figueiredo para Superintendente da PF em São Paulo, levando consigo os arquivos, pouco antes do ato do Governador Montoro que extinguiu o DOPS. 

Quando Fernando Collor de Mello, então Presidente da República, resolveu entregar ao governo de São Paulo os arquivos do DOPS , (intermediação feita através de contatos nossos com o então Ministro João Santana, com quem militamos na luta pela Anistia e no PT), Tuma já tentava construir uma nova pose, tendo por diversas vezes afirmado publicamente que entregaria os arquivos à Luiza Erundina, então Prefeita de São Paulo e envolvida na investigação da Vala do Cemitério de Perus. 

Quando Collor anunciou que entregaria os arquivos, Tuma e seus subordinados apressaram-se em “arrumá-los”. Desesperados pelo certo desaparecimento de provas contundentes que há anos buscávamos (e ainda buscamos!), fizemos vigília em frente ao prédio da PF em São Paulo , e obtivemos audiência com o então Diretor, por intermediação de Dom Paulo Evaristo Arns, que recebera denúncias de que os arquivos estavam sendo literalmente esvaziados. 

De nada adiantaram os telefonemas de D. Paulo, as pressões... Não temos como calcular a extensão do retirado, mas arquivos inteiros referentes a “Colaboradores” e à “Guerrilha do Araguaia” estavam vazios. 

Ficaram, entretanto, provas dos assassinatos sob tortura, em uma pasta de fotos desaparecida do IML. Uma dessas fotos, a de Sonia Maria de Moraes Angel Jones, assassinada sob torturas em 30 de novembro de 1973, foi mostrada a sua mãe, Cléa Moraes por Harry Shibata, que declarou ter sido a foto entregue a ele por Tuma. (Teria ele guardado outras?). Sonia, enterrada com nome falso, teve seu corpo reconhecido por ocasião das investigações procedidas durante o governo de Luiza Erundina.

Coletamos, também, documentos que provam a participação do Tuma. Relato e documento alguns fatos concretos que o envolvem, certamente não os únicos, mas aqueles que posso lembrar e comprovar através de documentos. 

1. Luiz Eurico Tejera Lisbôa, meu marido, constou da lista de desaparecidos políticos até abril de 1979, quando pudemos localizá-lo enterrado, sob o nome falso de Nelson Bueno, no Cemitério de Perus. No dia da votação do projeto de Anistia, em 22 de agosto de 1979, a denúncia do encontro de seu corpo foi feita no Congresso Nacional. Somente após esse fato, “apareceu” o inquérito, feito com nome falso e que concluía pelo seu suicídio. A versão oficial diz que Luiz Eurico suicidou-se, em um quarto de pensão na Liberdade, após disparar 3 ou 4 tiros a esmo pelo quarto. Deitado, uma arma em cada mão, disparara talvez contra o vento, para depois buscar abafar o tiro que se deu na cabeça, envolvendo a arma em uma colcha que cobria seu corpo. Essa é a explicação para as marcas que aparecem no quarto onde foi “encontrado” seu corpo e na colcha que lhe cobria.

Através de processo na Vara de Registros Públicos, busquei a retificação dos registros de óbito. Nesse processo, o Juiz solicitou que fossem localizadas cartas endereçadas a Luiz Eurico, que faziam parte dos documentos com ele apreendidos. Dois ofícios foram dirigidos pelo Juiz a Tuma, sem obter resposta. Oficiado, então, o Secretário de Segurança, Tuma respondeu que no DOPS nada constava em nome de Nelson Bueno. Dois novos ofícios foram dirigidos a Tuma e outro ao Secretário de Segurança, agora em nome de Luiz Eurico, todos sem resposta. (anexo 1).

Obtive a retificação, e permaneceu a versão oficial de suicídio até 1990, quando Caco Barcelos, repórter da Rede Globo, fez um programa sobre a Vala de Perus e apareceram novos fatos. Envolvida com as questões mais gerais dos mortos e desaparecidos e, sem assistência jurídica, perdi todos os prazos para judicialmente processar a União pelo assassinato e ocultamento de seu corpo.

Ao examinar os arquivos do DOPS, em 1991, lá encontrei uma lista, endereçada a Tuma, datada de 05 de novembro de 1978, com o nome de “Retorno ao Brasil” (anexo 2). 

Junto ao nome de Luiz Eurico, lê-se – morreu em setembro de 1972. Ou seja, Tuma sabia da morte de Luiz Eurico em novembro de 1978, antes, portanto da minha descoberta e denúncia. E sabia por que dispunha o arquivo do DOPS do inquérito em nome de Nelson Bueno e de ficha em nome de Nelson Bueno, fato que negou existir ao responder ofício ao Juiz (anexo 3). 

Não é uma simples acusação: Tuma mentiu ao Juiz! E ocultou as informações sobre o desaparecimento e assassinato de Luiz Eurico. 

2. Do mesmo anexo 2 - o "Listão do Tuma" - retiramos informações que nos permitiram localizar o local de sepultamento de Ruy Carlos Vieira Berbert, único paradeiro de desaparecido político identificado a partir da abertura dos arquivos do DOPS (fls. 57 do anexo 2). Teríamos também localizado Maria Augusta Tomas e Márcio Beck Machado (fls. 48 e 46), fato que já era de nosso conhecimento, apesar de termos perdido a corrida para a repressão, que chegou antes ao local e sumiu com os restos mortais. Jane Vanine Capozzi, desaparecida no Chile também é dada como morta.
Aos demais desaparecidos citados no "listão", é dada a informação: "não está em Cuba".

3. Flávio de Carvalho Molina constou da lista dos desaparecidos políticos até 1979, quando localizamos ofício (anexo 4) endereçado ao Juiz Auditor de São Paulo, assinado por Romeu Tuma, informando que ele fora morto e enterrado pelo nome de Álvaro Lopes Peralta. Somente ao descobrirmos esse ofício, a família de Flávio certificou-se de sua morte. Enterrado no cemitério de Perus, com esse mesmo nome falso informado por Tuma, seu corpo permanece, até hoje, dentre as mais de 1000 ossadas não identificadas da Vala de Perus. Maria Helena, sua mãe, que acompanhava cotidianamente nossas lutas, é hoje uma senhora idosa, sem ter podido, tantos anos depois, ver o enterro do corpo do filho que a mão de Tuma ajudou a esconder... 

4. Helder José Gomes Goulart foi assassinado sob torturas no DOI-CODI de São Paulo. Seus restos mortais foram identificados durante o governo de Luiza Erundina e trasladados para Mariana, em Minas Gerais. 

O laudo necroscópico de Helder, assinado por Harry Shibata, o mais “famoso” dentre os médicos legistas que assinaram laudos falsos, atende à requisição de exame de Romeu Tuma (anexo 5). A versão de Tuma na requisição ao IML é de que Helder morrera às 16 horas do dia 16 de julho de 1973, no Museu Ipiranga. Entretanto, deu entrada no IML antes de ser morto - às 8 horas, e três horas antes do tal tiroteio no Museu, que teria ocorrido às 11.30h. Na verdade, foi assassinado sob tortura, sendo que a foto localizada nos arquivos do DOPS tem indícios de que tenha sido tirada quando ainda vivia.

5. Norberto Nehring - assassinado sob torturas em 1970, é de Tuma a versão oficial à imprensa: suicidara-se em um quarto de hotel, perto do DOPS. Não tenho o documento citado na matéria de Emanuel Neri (anexo 6). 

Temos a certeza de que, se tivesse permanecido no DOPS de São Paulo uma pasta com todos os ofícios expedidos por Romeu Tuma, certamente teríamos acesso aos nomes falsos com que foram enterrados os desaparecidos e, possivelmente, aos restos mortais e às circunstâncias das mortes.
Para Tuma, há que valer-se das palavras do filho do assassino Sérgio Paranhos Fleury, conforme publicou a Folha de São Paulo, na última eleição:“Questão de afinidade".

Filho de Sérgio Paranhos Fleury, ícone da repressão e da tortura no regime militar, o também delegado Paulo Sérgio Fleury justifica assim o seu voto em São Paulo: "Pelo relacionamento pessoal e profissional que existiu, nós vamos apoiar e votar em Romeu Tuma".

Suzana Keniger Lisbôa é integrante da Comissão de Familiares de mortos e Desaparecidos Políticos

Notas:
- Texto escrito em setembro de 2002. Os anexos referidos não estão digitalizados, mas existem!
- Collor teria tomado essa decisão após manifestação organizada em frente à residência do presidente, em Brasília, organizada por Waldomiro Batista, irmão de
Marco Antonio Dias Batista, desaparecido político
- Os fatos foram divulgados à época.  A vigília foi feita por familiares de mortos e desaparecidos políticos


Fonte: www.carosamigos.com.br
22/09/2010
 

Tema proibido

Roseli Sayao

17 de agosto de 2010 às 16:34h

O preconceito contra a homossexualidade permanece. E como preconceito se combate com a educação, não há como a escola se esquivar-se mais

A escola, tradicionalmente, sempre deu as costas à sexualidade. Nas aulas de Biologia, o conteúdo sobre a anatomia e o funcionamento do aparelho reprodutor era e ainda é oferecido aos alunos de modo mecanicista e absolutamente desvinculado da sexualidade e de seu contexto sociocultural.

Acontece que, nessa mesma escola, há alunos, há professores, há um grande contingente de pessoas que trabalham nas mais diferentes áreas, que se relacionam e que passam várias horas do dia lá e, portanto, a sexualidade se faz presente, quer a escola queira, quer não. Ela faz barulho, ela se faz visível, ela incomoda e, mesmo assim, muitas escolas preferiam fazer silêncio a respeito. Mas nunca conseguiu.

Toda escola tem princípios ou regras – estas em número muito maior – que, de modo direto ou indireto, envolvem a sexualidade. O tipo de roupa que a escola aceita ou veta, as permissões ou as proibições a respeito do relacionamento físico entre alunos e seus pares, alunos e professores e professores e seus pares, por exemplo, retratam uma concepção de sexualidade que a escola aceita, tolera ou repudia. Isso significa, portanto, que, no chamado currículo oculto escolar, a sexualidade está presente inclusive na forma educativa – ou melhor, deseducativa.

Entretanto, a partir de 1998, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que colocam a sexualidade como um tema transversal, esta passou a fazer parte do conhecimento que, necessariamente, a escola precisa reconhecer e trabalhar.

Sabemos, porém, que na prática pouca coisa mudou desde então, de modo geral. Mais do que esse documento oficial, foi e é principalmente o corpo discente o maior responsável pela invasão da escola pela sexualidade.

Crianças e jovens, hiperexcitados por uma sociedade que quase tudo erotiza, trazem para dentro da escola músicas cujas letras e coreografias tratam o sexo de modo grosseiro, um vestuário sedutor e, principalmente, um linguajar e um comportamento que remetem diretamente à sexualidade.

Paralelamente, o mundo foi se transformando para aceitar a diversidade em todos os setores, inclusive na sexualidade, e, desse modo, a homossexualidade deixou de ser considerada um comportamento desviante e passou inicialmente a ser tolerada e progressivamente a ser aceita, não sem relutância ou resistências, é bom ressaltar.

E a escola, um pequeno retrato da sociedade, teve de passar a encarar o tema mesmo sem querer, mesmo sem saber como. É que é no espaço escolar que os adolescentes vivem boa parte de seu tempo no encontro com seus pares e é nesse momento da vida que a sexualidade deles explode, floresce. E claro que, com a maior aceitação social da diversidade sexual, muitos jovens que descobrem que sua orientação é homoerótica não se “trancam no armário”.

O preconceito contra a homossexualidade, apesar das mudanças sociais em curso, permanece. Ele se expressa ora de forma hostil, agressiva e violenta, ora de modo velado e modificado. E como preconceito se combate com a educação, não há como a escola se esquivar mais: ela precisa honrar seu papel social, cultural e de vocação humanista.

Agora, mais do que em qualquer outro tempo, a escola precisa levar a sério a sexualidade como tema transversal. Isso significa reconhecer que o assunto faz e deve fazer parte de seu currículo e, sempre pelo viés do conhecimento sistematizado já construído, deve ser planejado e contemplado com todo o alunado.

E não se trata de reproduzir, como tem sido feito com raras exceções, ideias cristalizadas, estereotipadas e preconceituosas a respeito do tema em geral e, especificamente, da homossexualidade. Trata-se, sim, de abordar o assunto com a propriedade de quem tem como função transmitir o conhecimento.

Para isso é preciso, em primeiro lugar, que a equipe escolar discuta o assunto abertamente e em conjunto. Sim, porque essa é a única maneira de assegurar aos alunos um trabalho coerente e crítico, assim como a construção dos princípios que nortearão o projeto político pedagógico de cada unidade escolar especificamente em relação à sexualidade e à educação sexual que quer colocar em curso.

Em segundo lugar, é preciso que cada escola providencie a formação necessária dos professores, orientadores, coordenadores e demais funcionários em relação ao tema. É bom lembrar que não bastam boas intenções para esse trabalho: é preciso estudo, consciência crítica e preparo para saber deixar de lado as posições pessoais, que todo mundo tem o direito a ter, no momento da ação educativa no espaço escolar.

Em terceiro lugar, a escola precisa constantemente lembrar que seu trabalho é com os alunos e não com os pais deles. São os mais novos que precisam de ajuda para crescer, se desenvolver e amadurecer e, desse modo, conseguir fazer escolhas próprias, com autonomia, mesmo que isso signifique ser diferente do que sua família quer e/ou espera. A escola tem feito muita confusão nesse sentido, já que tem escolhido tratar de questões delicadas dos alunos com os pais deles e não com os próprios.

Apesar da boa intenção dessa atitude, muitas crianças e adolescentes sofrem sérias consequências quando seus pais têm conhecimento, pela escola, de alguns comportamentos e atitudes dos filhos. Não são poucas as famílias que os castigam severamente nessas situações.

A escola pode oferecer alguma colaboração aos pais que, por exemplo, têm e sabem que têm filhos homossexuais. Trazer pessoas com expertise no tema, de preferência de fora da escola, para conversar com os pais a respeito de suas angústias e de seus receios e, principalmente, oferecer o espaço escolar para que os pais se reúnam e troquem experiências a respeito da educação familiar têm sido iniciativas de algumas escolas com bom aproveitamento. Entretanto, a escola assumir o papel de tentar educar os pais de seus alunos é gasto de tempo e de trabalho equivocado, já que o foco da escola são os mais novos.

Finalmente, num mundo em que a fronteira entre vida social e intimidade está desaparecendo, é importante que a escola forneça aos alunos a possibilidade de saber diferenciar a vida pública da vida privada, já que essa é uma importante condição do desenvolvimento saudável da sexualidade.

Fonte: www.cartacapital.com.br

Palmares, a longa resistência

Para o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos, Palmares, por sua longevidade de quase cem anos, é o mais importante capítulo da história social brasileira
Palmares era um dos tabus trancados pela consciência conservadora. No fim dos anos 70, alguns historiadores começaram a revelar essa história. Foto: Marcelo Carnaval.

No fim dos anos 60, o futuro premiado escritor Joel Rufino ainda era um professor de História sem emprego, a caminho de uma entrevista na Volkswagen, quando, por acaso, encontrou uma ex-aluna que estava envolvida na criação de uma revista para crianças, a Recreio. Convidado a escrever alguma história infantil, o historiador, que tinha visto sua coleção didática História Nova do Brasil, escrita em parceria com Nelson Werneck Sodré, ser recolhida pela ditadura, viu ali uma oportunidade, mesmo sem nunca ter feito isso antes. E a editora da revista, a futura premiada Ruth Rocha, gostou do que leu e pediu mais. Assim, por acaso, começou a carreira de escritor Joel Rufino, que nunca mais seria só historiador. Nem apenas um escritor de boas histórias, pois nelas sempre há, por trás, os livros lidos por direito e dever de ofício. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado, o historiador indica bons livros para ensinar a cultura afro-brasileira e discute alguns mitos sobre a história dos negros. E o escritor declara seu tributo a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Ou o contrário: o historiador fala do sertão rosiano e o escritor conta como extraiu literatura do rico período da abolição.

Carta na Escola: O que o senhor descobriu sobre o tipo de texto que mais agrada a crianças e jovens?
Joel Rufino: Eu fazia a crítica de que a literatura para crianças era boba, tratando a criança como débil mental. Até hoje tem isso, aquela profusão de “inhas”, “inhos”, e eu achava que alguém deveria fazer literatura pra criança sem tratá-la dessa forma. Havia o antecedente de Monteiro Lobato…

CE: O senhor foi leitor de Monteiro Lobato na infância?
JR: Não, foi até uma falta que me fez. Não sei por quê, mas não fui leitor de Lobato, não. Quando era adolescente, lá pelos 12 anos, comecei a ler Júlio Verne e Jack London, e ficou esse furo na minha formação. Mas o que me motivou a escrever foi, de uma forma semelhante, o que aconteceu com o Gonzaguinha na música. Eu me lembro que ele foi perguntado sobre como começou a compor e ele disse que achava tão ruim o que ouvia que pensou: “Eu posso fazer melhor que isso”. Aí, eu comecei a procurar uma linguagem que não fosse aquela coisa infantiloide, e acho que encontrei esse estilo em grandes autores que escreveram para crianças também, como o Graciliano Ramos. Alexandre e Seus Heróis foi um desses livros que me ensinaram como tratar a criança como um leitor, provável consumidor de literatura. Acho que foi assim que consolidei o meu estilo, longe do “nhenhenhém” infantiloide e me amparando nos grandes autores.

CE: Em O Gosto da África há alguns ecos de Guimarães Rosa, como a referência à cidade do Ão, perto de Montes Claros. Ele, de alguma forma, também se situa entre esses autores que o influenciaram?
JR: O Guimarães Rosa motivou todos aqueles que vieram depois. Ele reinventou a literatura, como todo grande autor. Essa referência ao Ão devia estar na minha memória, no meu imaginário. Aquela região do Guimarães Rosa ele tornou tão poderosa que é difícil esquecer; o lugar, como os geógrafos gostam de chamar, que une o local geográfico mais o imaginário. Esse lugar recriado pelo escritor aparece nas minhas histórias, de vez em quando.

CE: Até pela sua formação de historiador, o senhor gosta de usar personagens históricos na literatura. Eu gostaria, inicialmente, de falar de um deles, Zumbi, que foi tema de um livro seu. Como foi fazer esse trabalho de pesquisa? E por que Zumbi demorou tanto tempo para aparecer?
JR: Esse meu livro é dos anos 80, tem 20 anos. De lá pra cá, nós aprendemos um pouco mais sobre o Quilombo dos Palmares e Zumbi. De passagem digo que é conversa fiada aquela história de que não se consegue fazer pesquisa sobre os negros porque Rui Barbosa teria queimado os arquivos, isso é uma lenda. Há muita documentação sobre os negros, sob todos os aspectos. E no caso de Palmares, há pelo menos 10 mil manuscritos, fragmentos de documentação histórica que ainda não foram completamente lidos e decifrados. Só a Universidade Federal de Alagoas tem mais de 5 mil desses documentos sobre Palmares.

CE: Talvez por conta da longevidade do quilombo?
JR: É uma extensão de quase cem anos. Se a gente pensar que o Brasil tem cinco séculos, é o capítulo mais importante da história social do País, pela sua duração. Aqui entramos na segunda parte da sua pergunta: por que demorou tanto tempo para emergir? A razão só pode ser ideológica. A consciência conservadora brasileira sempre foi muito sensível a mexer na história, havia alguns tabus: João Cândido, Canudos. E Palmares era um tabu também, que ficava trancado pela consciência conservadora. No fim dos anos 70, alguns historiadores começaram a revelar essa história. Como Décio Freitas, por exemplo, que estava exilado no Uruguai e foi pesquisar a história de Palmares no Conselho Ultramarino da Espanha. Ele conseguiu reunir uma documentação que lhe permitiu escrever o primeiro livro de impacto sobre Palmares, que foi A Guerra dos Escravos. Outro avanço veio de um filme do Cacá Diegues, feito nos anos 80, chamado Quilombo. Cacá partiu desse livro do Décio, consultou outros historiadores e fez um filme que é alegórico, não é realista, mas no qual já surgem alguns elementos sobre Palmares de que não se falava antes. Se fosse resumir esse filme, eu diria que é a história de um negro portador da ideia da utopia, de uma sociedade justa, igualitária. Por último, vou citar o movimento negro, que descobriu Palmares nos anos 80 e transformou a Serra da Barriga em local de peregrinação. Hoje, o quilombo é -visitado por muita gente, recebe acadêmicos do mundo todo. Quando o movimento negro descobriu Palmares, colocou Zumbi como uma bandeira.

CE: É quando a história da escravidão começa a mudar da Princesa Isabel e dos abolicionistas para o aspecto de luta e resistência?
JR: O que aconteceu é que começou a se fazer a seguinte analogia: a história do negro é uma história de luta. Será que no 13 de Maio também não houve luta? Será que foi apenas um ato formal da Princesa Isabel para confirmar um fato já dado? Daí se começou a estudar melhor o processo da Abolição. Alguns historiadores começaram a rever o 13 de Maio e mostrar que houve luta também naquela época. Eu tomo essa revisão como consequência de Palmares.

CE: Especulando sobre como seria uma outra história construída a partir da Abolição, seria possível para o Brasil ter seguido um caminho que colocasse essa massa de trabalhadores para dentro do sistema econômico?
JR: Considerando que o historiador é aquele que prevê o passado, se pegarmos 1850, quais eram as possibilidades que havia? Era um momento em que nascia o capitalismo brasileiro e ele trazia várias possibilidades de desdobramento. Havia nessa época uma camada de negros livres, donos de pequenos negócios. Joaquim Nabuco chamou essa camada de um “formigueiro de pequenas iniciativas feitas por negros”, que tinham suas oficinas e outros pequenos comércios. Olhando de hoje, uma das possibilidades era essa camada de negros livres ter se tornado uma burguesia negra, uma classe média negra. Então seria diferente hoje. Mas esse “formigueiro de iniciativas” foi eliminado pela concorrência. Em 1900, essa camada já estava derrotada pelos estrangeiros imigrantes, que chegavam com capital, muitas vezes apoiados por bancos ou pelo governo, que lhes dava facilidades. Assim, essa camada negra protoburguesa desaparece.

CE: O senhor também escreveu sobre essa época em seu livro A Abolição, que virou minissérie de televisão. Esse livro surgiu como uma proposta da emissora?
JR: Você está falando de um livro que foi a base de uma minissérie do Walter Avancini, não é? Você tem esse livro?

CE: Eu o li na Biblioteca Nacional. Por quê?
JR: Porque eu acabei ficando sem nenhum! (risos) O Avancini, já falecido, era meu amigo e queria fazer uma história sobre a Abolição e outra sobre a Proclamação da República. E me estimulou a escrever alguma coisa. Foi uma encomenda e eu a escrevi quase ao mesmo tempo que dava os argumentos para o Avancini. Foi interessante mexer naquele ambiente de jornalistas (a revista Semana Illustrada, dirigida por Angelo Agostini, reduto de abolicionistas) e dos intelectuais, que naquele momento fizeram aliança com a classe trabalhadora, no caso os escravos. Quando essa aproximação acontece, em geral provoca mudança. E foi esse o primeiro caso na história do País, porque na Independência essa aliança não aconteceu, nem nos movimentos anteriores. Ou eram grupos de intelectuais sem conexão com os trabalhadores ou o contrário. Na Abolição houve esse encontro de intelectuais, principalmente jornalistas, como Angelo Agostini, Carlos Lacerda, e os quilombolas, os organizadores dos escravos. Houve, também, participação dos trabalhadores livres. Nessa época já chegavam por aqui os italianos e espanhóis, no meio deles muitos anarquistas, que participaram dessa luta. Muita gente no movimento negro diz que a abolição não tem nenhuma importância, mas eu não concordo. Inclusive, porque manifestou um processo mais geral de transformação que o País estava passando. Daí que tem relação direta com a Proclamação da República e o início da economia capitalista no Brasil. É na passagem do trabalho escravo para o livre que deslancha o capitalismo no País.

CE: Que autores o senhor recomendaria para quem quer saber mais sobre a Abolição?
JR: Essa nova geração de historiadores é muito boa. Há João José Reis, que publicou um “senhor livro” sobre esse período chamado Domingos Sodré, um Sacerdote Africano, que conta a história de um babalaô de Salvador que viveu no fim do século XIX. Lilia Schwarcz também é uma historiadora respeitável. Há, ainda, Eduardo Oliveira, que vem publicando sobre esse período. Qualquer professor vai ler livros desses autores com agrado porque, hoje, um historiador publicado é perfeitamente legível por alguém que não é do ramo. Outro exemplo, ainda, é Alberto da Costa e Silva, que talvez seja o principal historiador desse processo Brasil-África. Ele tem um livro que eu recomendaria efusivamente, Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos. Esse é um pequeno livro que conta a história do principal mercador de escravos para o Brasil, que era um mestiço brasileiro que foi para a África e fez fortuna. Daí, o leitor fica sabendo como era o tráfico negreiro, como se fazia no dia a dia, quanto se ganhava. De passagem, derruba aquele mito de que a escravidão foi um assalto do homem branco impiedoso em busca de mão de obra. Mostra-se ali que a escravidão foi um negócio, um empreendimento. Nei Lopes é outro que tem uma preciosa Enciclopédia da Diáspora Africana. Todos esses livros são de boa leitura. Além disso, a Unesco financiou um programa internacional chamado Rota do Escravo, que fez um mapeamento das fontes e dos documentos sobre o tráfico negreiro na África, nas Américas e na Europa. Só para dar um exemplo, todos os fortes africanos que embarcavam negros para o Brasil têm a sua documentação. Não falta documentação sobre esse período, é bom lembrar que a história não se faz só com documentos de papel. A língua, por exemplo, é um documento da história. A genética também tem ajudado os historiadores a descobrir de onde vieram os escravos.

CE: Que mitos sobre a história do negro são os mais persistentes?
JR: Nós já citamos dois, o de que o comércio de escravos era unilateral; outro, de que não dá pra fazer a história do negro porque não há documentação. Um terceiro seria o de que há uma história do negro e uma história do Brasil que correm paralelas. É possível separar a história do negro pedagogicamente, mas é só se avançar um pouco para perceber que quem fala da história do negro fala da história do País. Outro, ainda, que está imbricado em todos os anteriores, é o mito da passividade do negro. Quando eu estava na escola, se dizia que o escravo no Brasil foi o negro porque o índio não se submeteu à escravidão. Esse é um mito de duas faces. Uma, a de que o índio não se submeteu; outra, a de que o negro se submeteu. Nenhum povo se submete à escravidão. No caso do índio, ele lutou contra a escravidão, mas também foi escravo. Por muito tempo, até o século XVIII, mais tempo do que no resto da América espanhola, durante quase 250 anos.

Fonte: www.cartacapital.com.br

No xaxado com Lampião

A octogenária Alzira Marques recorda os bailes animados organizados pelo rei do cangaço

Noite de sábado para domingo, fim de setembro de 1936. Faltava só passar o pó no rosto, espalhar o perfume atrás da orelha e calçar as alpercatas. Cabelos negros e encaracolados na altura da cintura, dentro do seu melhor vestido, a menina de 12 anos, que, se os pais se descuidassem, trocava o estudo pela dança, estava pronta para o seu primeiro baile no alto sertão sergipano com o bando do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Não havia escolha, só mesmo confiar na bênção da tia de criação antes de sair de casa engolindo o medo.

“Eles mandavam apanhar a gente. Vinha aquela ordem e tinha de cumprir. Se não, causava prejuízo depois”, conta Alzira Marques, que completa 86 anos em agosto. Ela lembra detalhes das incontáveis festas cangaceiras a que foi em fazendas que já não existem mais e que deram lugar à planejada Canindé de São Francisco, com o início da construção da hidrelétrica do Xingó, em 1987. Canindé Velho, como a sertaneja chama o local onde nasceu, à beira do Velho Chico, foi demolida por conta da usina, hoje fonte de renda para a cidade – atrai quase 200 mil turistas por ano com o Cânion do Xingó.

O auge de Lampião em Sergipe vai de 1934 a 1938, quando o cangaceiro foi morto ao lado de Maria Bonita e outros nove do bando, em 28 de julho, na Grota do Angico, município de Poço Redondo. “Este é o estado onde ele encontrava mais proteção, aliando-se aos poderosos locais, como o coronel Hercílio Porfírio de Britto, que dominava Canindé como se fosse um feudo”, explica Jairo Luiz Oliveira, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. “São os chamados coiteiros (quem dava proteção ao cangaço), políticos de Lampião. Melhor ser seu amigo que inimigo.”

Foi nas terras de Porfírio de Britto que Alzira mais arrastou as sandálias. “Na primeira vez, encontrei Dulce, que foi criada comigo em Canindé Velho e tinha virado mulher do cangaceiro Criança. Eles também eram de muito respeito e nunca buliram com gente minha. Pronto, não tive mais medo”, relembra. Temporada de baile era fim de mês, quando as volantes da Bahia e Pernambuco – as polícias mais algozes no rastro de Lampião – voltavam a seus estados para receber o soldo. “Aí os cangaceiros viam o Sertão mais livre para fazer festa”, diz.
Dia de dança, Alzira tinha de sair e voltar à noite para não levantar a suspeita dos vizinhos. Às 22 horas, punha-se a andar 2 quilômetros até o local onde um coiteiro escondia os cavalos. Outras meninas iam junto. Montavam e seguiam morro acima por uns 15 minutos. “Quando a gente chegava, ia direto dançar o xaxado, forró, o que fosse, até 4 horas da manhã.” Mesmo caminho de volta, chegava com um agrado do rei do cangaço: uma nota de 20 mil réis. “Era tanto do dinheiro, mais de 300 reais na época de hoje. Dava tudo para minha tia.”

Apesar de festeiro, não era sempre que o líder do bando dava o ar da graça. Quando ia, porém, não se fazia de rogado: no mato à luz de candeeiro, onde o arrasta-pé comia solto, brilhantina no cabelo, dançava com as moças do baile sem sair da linha. Média de 20 homens para 15 mulheres. “Ninguém era besta de mexer com a gente. Eles nos respeitavam demais. Lampião era o que mais recomendava: ‘Olha o respeito!’” Maria Bonita – que para Alzira “não era lá essa boniteza, Maria de Pancada era mais bonita” – não tinha ciúme.
O cangaceiro mais conhecido do Brasil gostava de cantar e levava jeito para compor. Quem não se embalou ao som de Olé, mulher rendeira / Olé, mulhé rendá? Ou de Acorda, Maria Bonita / Levanta, vai fazer o café? Alzira conta que era comum ele pedir ao sanfoneiro Né Pereira – outro intimado do povoado – para tocar essas canções, enquanto ele mesmo cantava. “Letra e música dele, além de ser um exímio tocador de sanfona”, confirma Oliveira.

Os bailes eram como banquetes. “Tinha comida e bebida de toda qualidade. Peixe, galinha, porco, carneiro, coalhada, bolo, cachaça limpa”, diz Alzira. Outro ponto que se notava era o aroma: os cangaceiros, que podiam passar até 20 dias sem tomar banho, gostavam de se perfumar. O coronel Audálio Tenório, de Águas Belas (PE), chegou a dar caixas de Fleurs d’Amour, da marca francesa Roger & Gallet, para Lampião. “Era perfume do bom, mas misturado com suor. Subia um cheiro afetado. A gente dançava porque era bom”, afirma a senhora, que se entrosava mais com Santa Cruz e Cruzeiro.

Mais de 70 anos depois, Alzira ainda sonha com aquelas noites e sente falta da convivência com os amigos: muitas festas aconteciam em Feliz Deserto, fazenda que Manuel Marques, seu então futuro sogro, tomava conta. Não raro, o brilho da prata e do ouro das correntes, pulseiras e anéis dos cangaceiros visitam sua memória, assim como a imagem de Lampião lendo a Bíblia num canto da festa. “Ele era muito religioso.” No seu pé de ouvido fica o xa-xa-xá das sandálias contra o chão, som que deu nome ao xaxado, segundo Câmara Cascudo, ritmo tipicamente cangaceiro que não se dança em par.

Testemunha de um período importante da história do País, conta que nunca teve vontade de entrar para o cangaço nem considerava Lampião bandido: “Não era ladrão, ele pedia e pagava, fosse por uma criação, por um almoço. Agora, se bulissem com ele, matava mesmo”. Na cidade é conhecida como a Rainha do Xaxado. No último São João, que antecipou as comemorações do centenário de nascimento de Maria Bonita (8/3/1911), foi uma das homenageadas.

Balançando-se na rede na entrada de sua casa, satisfeita com os dez filhos, 40 netos e 37 bisnetos, Alzira aponta para um dos locais onde dançou com Lampião: uns 100 metros adiante, a Rádio Xingó FM. “Continua lugar de música.” Mas e Lampião, dançava bem? “Ah, ele dançava bom.”

Fonte: www.cartacapital.com.br *

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


AO ARQUEÓLOGO DO FUTURO

Carta de uma arqueóloga do presente

Leia a carta de Niéde Guidón, a arqueóloga que, com suas descobertas no Piauí, revolucionou as teorias sobre a ocupação da América pelo homem primitivo, comprovando a presença de humanos em período anterior ao suposto povoamento das Américas através do estreito de Bhering e conseqüente povoamento das Américas a partir do norte.

Caro colega do futuro,

Você está quase no final de um século que vi nascer. No exercício de minha profissão, encontrei indícios, vestígios, e propus hipóteses sobre como vivia o Homem do passado, como usava suas ferramentas, como preparava suas armas.

Meu caro colega, mesmo não sabendo como você é - talvez uma máquina inteligente -, escrevo-lhe como se estivesse dirigindo-me a um Homem. E escrevo-lhe com a emoção de um Homem. Um Homem desse início de século que nos abriga. Caso encontre dificuldade em entender-me, tenho certeza de que poderá recorrer a sofisticados dicionários, a sofisticados programas para computador, que lhe permitirão descobrir o sentido exato das minhas palavras.

No início, todos os Homens viviam como caçadores-coletores. Para adquirir conhecimento e conviver com as outras espécies da natureza, para sobreviver com os parcos recursos biológicos que tinham, esses Homens necessitavam de grande coesão social. O saber era passado dos adultos para os jovens, igualmente. Sabiam que não podiam ter proles numerosas porque, ao contrário dos outros animais, o filhote humano levava anos para aprender e ser capaz de sobreviver só. Todos executavam todas as tarefas, todos eram iguais. Os chefes comandavam com base em sua força física, que, como todos os recursos biológicos, nasce, atinge seu apogeu e definha. Assim, um chefe exercia seu poder durante um tempo limitado, até que um outro membro da tribo, mais jovem, mais forte, o suplantava.

Os Homens temiam a natureza, reconheciam seu poder, um poder que, para eles, emanava de entidades sobrenaturais. E essas entidades sobrenaturais comandavam as águas, os ventos, o fogo, os astros. Seres que viviam por sua conta e cuja passagem pela vida dos Homens era eventual. Os espíritos!

Em um momento dado de nossa história, alguém imaginou como fazer para garantir um poder mais duradouro, que não dependesse unicamente dos recursos biológicos. Como a morte é um fenômeno que assusta a todos os animais, esse alguém imaginou uma história que tratava do além, da existência de seres sobrenaturais, da boa vontade dos quais dependeria a vida e o destino pós-morte de todos os Homens. Os Deuses!

Nesse momento começaram a se diferenciar os Homens. Aqueles que somente sabiam conviver com a natureza, que dependiam de sua força para sobreviver, e aqueles que tratavam com os deuses: os sacerdotes. Os últimos, constituíam uma casta privilegiada, com poder assegurado. Com o poder assegurado, não tinham mais que enfrentar a vida difícil do dia-a-dia, pois recebiam dádivas daqueles que não tinham o poder de tratar com as divindades.

Mas como os Deuses eram muitos, havia a possibilidade de tratar com seus intermediários, e o poder se diluía. Como concentrá-lo, então? Como colocar mais elementos de uma família, de um clã, no exercício do poder?

Novamente um gênio inventou outra forma de poder. Os Deuses escolhiam e davam a um homem o poder para que ele fosse o chefe de todo seu grupo. E esse privilégio passava de pai a filho. Nasceram, assim, as dinastias. O poder concentrava-se cada vez mais.

As sociedades começaram a crescer além dos limites permitidos pela natureza, pois, para que alguns pudessem viver sem fazer nada, além de falar com os Deuses e dar ordens a seus súditos, para que pudessem viver em palácios, mergulhados em rendas e comendo iguarias, deveriam existir milhões de escravos, trabalhando para ter direito ao pão, à água e à procriação, engendrando muitos futuros escravos. Templos, túmulos monumentais e palácios, sempre exigiram multidões de escravos para serem construídos e mantidos.

Com o aparecimento da escrita, das castas, o saber ficou concentrado naqueles que dominavam. Não era mais todos ensinando a todos. Assim, começaram a aparecer as classes cultivadas e os ignorantes. Sempre poucos letrados para muitos ignaros.

E depois? Depois, um novo passo foi dado para concentrar e tornar o poder definitivamente esmagador. Um espírito genial criou o Deus único, engendrou o monoteísmo. Concentrou-se o poder em um homem que representava Deus, infalível, cuja palavra deveria ser seguida sem discussões. Em torno dele toda uma corte, formando uma estrutura triangular, sempre poucos no alto, muitos na base. O judaísmo, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo. Cada grupo inventando seu próprio Deus, único, o certo, o bom, o que devia ser adorado. Quem nele não acreditasse, deveria ser exterminado.

Poder religioso e seu derivado, o poder civil, nunca se dissociaram. Juntos escreveram páginas com o sangue de todos os que se rebelavam e poderiam representar a menor ameaça a esse estado de coisas.

Assim, durante milênios, a sociedade humana acostumou-se com as guerras, com o extermínio dos que pensavam diferente, dos que não queriam se submeter e ser escravos.

Guerras pelo domínio das terras e dos povos, das riquezas do mundo. Guerras e perseguições contra os que negavam ou duvidavam do poder divino.

Os que falavam da bondade de Deus, de sua misericórdia, eram os que torturavam, mantinham em masmorras e matavam os que ousavam duvidar de sua palavra. Mesmo aqueles que não duvidavam, mas que representavam uma presa interessante, pela sua fortuna, por sua mulher, por suas terras, também eram perseguidos, eliminados.

E como o Poder nunca se sacia, quanto mais baixo encontrava-se o Homem na escala social, mais filhos deveria produzir. Sempre com a idéia de que, para sobreviver, necessitava de muitas mãos, mãos que o ajudariam a trabalhar e, mais e mais, agradar ao Poder.

Assim vimos Homens torturando, matando, chacinando outros Homens. Vimos a Idade Média, a Inquisição. A invasão das Américas e o aniquilamento de milhões de seres humanos que compunham os primeiros povos, que partilhavam as terras com todas as outras espécies, que viam o verde das matas e escutavam a algaravia dos bichos.

Em um dado momento, alguém se lembrou de um tipo de governo que havia existido em um pequeno país, criador de uma civilização, onde a cultura era difundida e o povo tinha suas tradições, a democracia. Imediatamente, esse alguém pensou nas possibilidades que ela abriria se fosse implantada em países com elites cultas e massas incultas. O povo acreditou que estava elegendo seus representantes. E, assim, o Poder, ao invés de ter que contentar milhões, teve unicamente de enriquecer, dar empregos e acanalhar os representantes desses milhões, algumas centenas de cidadãos que passaram a integrar um novo Poder. Assim nasceram os políticos, prometendo uma vida maravilhosa para os que nele votassem, mas pedindo que esquecessem o que haviam escrito ou prometido no instante em que se viram investidos de Poder.

Vimos agir o nazismo, o fascismo, o comunismo. Homens sendo assassinados em câmaras de gás, fuzilados, torturados. Hiroshima e Nagasaki. Os brancos rejeitando os negros e os amarelos, os negros rejeitando os brancos e os amarelos, os amarelos rejeitando brancos e negros. Os capitalistas. As classes trabalhadoras. E cada vez mais os donos do Poder aprimoravam-se. A transmissão do saber, que havia sido concentrada, que havia passado da Igreja para a Universidade, formando jovens capazes de pensar e protestar, tinha de ser demolida. E a Universidade foi destruída. Ao invés do saber, ofereciam-se diplomas.

O Poder concentrou-se na tecnologia. Os tecnocratas, sem pensar em algo mais sofisticado, menos simplista, ativeram-se apenas às operações necessárias para conseguir que uma máquina executasse uma tarefa específica, que o computador resolvesse determinado problema. Tudo orquestrado para que a necessidade de consumo aumentasse a cada instante, e mais impostos fossem pagos. Impostos que garantiriam educação para seus filhos, saúde para a família, estradas, cidades limpas e seguras, o direito ao lazer. E o Poder recebia os impostos e decidia o que fazer com eles, mudando seus destinos, oferecendo escola de péssimo nível, saúde que significava morte mais rápida, bandidos ameaçando a todos. O Poder podia solicitar empréstimos, aceitar juros extorsivos, quando precisava de dinheiro para uma fantasia qualquer, como construir uma capital nova! Mas quem pagava os empréstimos, mais os juros, era o povo, cujos filhos já nasciam com uma dívida enorme.

O rosário de sandices continuou: abriram a possibilidade para que o Homem fosse diferente dos outros animais de sua família. O Homem poderia viver mais do que seus primos macacos. Que felicidade... Para viver mais, trabalharia mais, e manteria todo o sistema necessário, com isso continuaria arrastando seus males pelo mundo.

Num mundo onde só existia espaço para a arrogância, as outras espécies passaram a existir apenas em função das necessidades do Homem. Os animais eram torturados, viviam em pânico, aterrorizados.

Por quê? O porquê de tanta atrocidade? É isso que está me perguntando, meu caro colega do futuro?

Apenas para produzir mais e para nutrir a espécie que se fez dominante. E não parou por aí, não: milhares e milhares de espécies vegetais foram destruídas, dando lugar apenas àquelas que interessavam ao Homem. Animais e plantas foram modificados geneticamente para aumentar a produtividade. Isso, apesar de continuarem pregando que Deus havia criado o mundo, e tudo o que existia sobre a face da Terra. O Homem corrigia e melhorava o que Deus havia feito!

Para culminar, decidiram que nem mesmo os filhos poderiam substituir os pais. O amor ao Poder era tal que criaram a técnica da clonagem, e cada um foi substituído por si mesmo. A reprodução e os riscos de ver nascer um filho que não fosse digno de seu patrimônio ficou relegada aos que não tinham meios para se auto-reproduzir.

Destruíram, meu caro colega, a beleza do mundo, o prazer da vida. As primeiras sociedades humanas, pouco numerosas, eram solidárias. A generosidade da natureza podia manter todos saudáveis. As sociedades humanas no início desse nosso século são compostas por bilhões de pessoas. Sociedades, na sua grande maioria, doentes, solitárias. A natureza foi destruída. Todo o alimento tem de ser comprado. A água tem de ser comprada. Os dons da natureza, hoje, têm seus donos: o Poder. O Poder, sob suas inúmeras formas. A competição é a regra da vida, e todos os Homens, mesmo sem ter consciência, odeiam seus semelhantes, potenciais competidores. E a eles atribuem a culpa de não poderem viver melhor.

E o que aconteceu com o Homem? É isso que está querendo saber agora, meu caro colega? Infelizmente, não poderei lhe responder a essa pergunta. Parti há muito. Mas tenho algumas curiosidades a respeito do seu tempo. Me diga: o Sol que o aquece agora é o mesmo que vejo brilhar lá fora, ou ele foi substituído por algo artificial? As geleiras dos Pólos degelaram e invadiram territórios hoje ocupados por populações costeiras? O que restou da camada de ozônio? Ela ainda existe? E a Floresta Amazônica, o que foi feito dela? Esvaiu-se em fogo e fumaça? A caatinga sobreviveu? Ou você nunca ouviu falar sobre ela? Você já ouviu falar em macaco-prego? Já ouviu falar em veados-galheiros, vaga-lumes, bem-te-vis? Em tamanduás? Em tatus, araras azuis e vermelhas, sapos, morcegos, onças, cobras, beija-flores, sabiás? Já conjugou o verbo sonhar, sorrir, acreditar? E as mentes? Conseguiram eles, por fim, dominar todas as mentes?

Nesse instante, caro colega do futuro, estendo o meu olhar pelo vastidão do que ainda é um pedaço do paraíso - um pedaço do paraíso chamado Serra da Capivara -, que Poderes nada ocultos insistem em ignorar, em destruir, e entrego-lhe este texto para que continue a contar como prosseguiu a nossa história, a história de todos nós. Uma história que, por séculos e séculos, tem sido de amargura, aflição e terror.

Fonte: Revista Carta Maior, setembro/2010.

A luta continua

"Em meio ao processo pós-moderno, alimentado pela cultura do individualismo, o resgate das tradições e saberes populares tornam-se imprescindíveis para a identificação do ser coletivo.

João Cabral de Melo Neto narrou a saga do retirante nordestino em Morte e Vida Severina. Mais importante do que a luta pela sobrevivência em meio à seca, à fome, à vida e à morte, a tentativa falha de se apresentar é essencial para compreender que todos os severinos são iguais. Iguais em tudo na vida.

Severinos são todos esses, nós, trabalhadores. Estes homens e suas cidades se parecem cada vez menos consigo mesmos. As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto ambicionou. Qualquer um entende as mensagens que o televisor transmite. A vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos".

Morte e Vida Severina

Severino, em busca de uma identidade
“O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.”

(João Cabral de Melo Neto – trecho de Morte e Vida Severina).


Texto adaptado da Carta Maior, 22/09/2010

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Modelo econômico dos EUA está falido

Michael Hudson: “Modelo econômico dos EUA está falido”

Segundo o economista norte-americano, os EUA impulsionaram um modelo econômico que está falido e, com o advento da mais recente crise econômica global, cabe agora aos países que compõem o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) usar sua força conjunta para colocar em marcha um modelo alternativo: “Quando o EUA diz que os países do Bric ainda têm espaço para aumentar suas dívidas, o que quer dizer é que estes países ainda têm minas que podem ser vendidas e ainda têm florestas que podem ser cortadas. Nos próximos anos, o Norte vai fazer o máximo possível para pegar os seus recursos”, disse Hudson, durante seminário promovido pelo CDES em Brasília.

BRASÍLIA - “No cinema, nós já tínhamos o Michael Moore. Agora, na economia, temos o Michael Hudson”. A brincadeira feita pelo conselheiro Jacy Afonso de Melo revela o impacto causado pela intervenção do economista e professor da Universidade do Missouri na quinta-feira (16), durante sua participação em um seminário internacional promovido pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) em Brasília. Hudson, um ex-economista de Wall Street, mereceu repetidos aplausos dos participantes do seminário ao apresentar, assim como o xará cineasta, um ponto de vista ácido e crítico sobre o modelo econômico de seu país.

Segundo o economista norte-americano, os Estados Unidos impulsionou “um modelo econômico que está falido” e, com o advento da mais recente crise econômica global, cabe agora aos países que compõem o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) usar sua força conjunta para colocar em marcha um modelo alternativo: “Quando o EUA diz que os países do Bric ainda têm espaço para aumentar suas dívidas, o que quer dizer é que estes países ainda têm minas que podem ser vendidas e ainda têm florestas que podem ser cortadas. Nos próximos anos, o Norte vai fazer o máximo possível para pegar os seus recursos”, disse Hudson, em uma de suas muitas frases de impacto.

Hudson afirmou que o governo norte-americano passou 50 anos obrigando os países em desenvolvimento a contrair empréstimos que, na verdade, tinham como objetivo principal a criação de uma infra-estrutura que facilitasse a exportação de grãos, minério e outras matérias-primas para os EUA: “Mais tarde, em sua fase neoliberal, o governo dos EUA perguntou: por quê vocês, para pagar as dívidas que contraíram conosco, não vendem as estradas e portos que construíram com o dinheiro que emprestamos?”, concluiu.

Instituições como o FMI e o Banco Mundial, na visão de Hudson, foram criadas com o objetivo de fazer com que os países em desenvolvimento dependessem dos EUA. Segundo o economista, a adoção do dólar como moeda de parâmetro para a economia mundial foi, ao lado do que qualificou como “dependência militar”, o principal fator de fortalecimento para a hegemonia norte-americana: “Por isso, os Brics podem criar novas estruturas econômicas que não sejam baseadas no poder militar dos EUA”, disse.

Hudson citou o exemplo da China, “a quem os EUA só deixam gastar sua riqueza para comprar bônus do Tesouro americano”, para afirmar que o Brasil, fortalecido pela travessia sem grandes traumas da crise econômica global, pode seguir outro caminho: “O Brasil pode criar os seus próprios créditos, e vocês não precisam de moeda estrangeira para fazer a economia funcionar”.

Novo sistema financeiro
Além de Michael Hudson, outros palestrantes estrangeiros analisaram a conjuntura econômica mundial. Também norte-americano e pesquisador da Universidade do Missouri, Larry Randall Wray pregou a necessidade de criação de um novo sistema financeiro internacional: “Esse sistema deve ter um mecanismo de pagamento sólido e seguro, promover empréstimos menos longos, adotar um mecanismo de financiamento imobiliário sólido e um ativo de capitais a longo termo”, disse Wray, acrescentando que “esses ajustes não precisam ser feitos necessariamente pelo setor privado”.

Diretor do Observatório Francês de Conjunturas Econômicas (OFCE), Xavier Timbeau defendeu a adoção de programas de renda-mínima pelos países em desenvolvimento: “Precisamos adotar novos indicadores de riqueza que não sejam meramente econômicos. Não digam que para reduzir a pobreza basta aumentar o crescimento da economia” disse o economista francês.

O economista mexicano Julio Boltvinick também sugeriu “uma abordagem crítica sobre o paradigma dominante que reduz o bem-estar humano ao bem-estar econômico” e defendeu a adoção de novos conceitos de bem-estar: “Riqueza por si só gera poder, mas não gera necessariamente bem-estar”. Boltvinick defendeu ainda a criação de um índice de progresso social e a adoção de um indicador de tempo livre como formas de medir a desigualdade social em cada país: “Uma sociedade justa tem um tempo livre igualitário”.


Fonte: www.cartamaior.com.br
22/09/2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O governo Vargas e as ideias eugenistas


A política de branqueamento no Brasil está presente desde o período da Monarquia. Veja o que diz Maria Luiza Tucci: "Entre 1869 e 1870, o Conde de Gobineau esteve no Brasil e manteve intensa amizade com o imperador D. Pedro II, discutindo com ele a abolição e a política de imigração. Curiosamente, previu para menos de duzentos anos o desaparecimento dos habitantes brasileiros, condenados pelo crescente processo de miscigenação".

Com isso, o Estado brasileiro após a proclamação da República (1889), empreendeu uma política de branqueamento. Considerava que era necessário eliminar os "quistos étnicos" ( seriam inadequados ou indesejáveis aos interesses do governo os negros, indígenas, orientais, judeus, isto é, os "não-brancos"). Isso só iria começar a partir do momento em que chegaram os primeiros imigrantes ao Brasil, que vinheram obedecer aos aspectos econômicos imediatos dos latifundiários.

Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), intensificaram-se as políticas restritivas à imigração de estrangeiros, sobretudo, aos judeus. "O governo Vargas achava que os judeus não eram "adequados" para a miscigenição", observa Fábio Koifman (UFRRJ, Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, nº 58, julho/2010).

As ideias eugenistas no país surgem a partir do momento em que se aprofundaram o debate , advindas de setores da elite, sobre o tipo de imigrante considerado desejável para preencher as lacunas do território nacional.

A palavra eugenia deriva do "grego eu (bom) e genesis (geração). Pretensa ciência fundamentada nas ideias de Francis Galton, conhecido pela descoberta das impressões digitais. Galton defendia a necessidade de o Estado formular um plano com o objetivo de selecionar jovens aptos a procriarem os mais capazes. Propunha a escolha de uma boa raça (a mais pura) ou o bom nascimento, chegando ao extremo de defender a esterilização de doentes, criminosos, judeus e ciganos. A eugenia incentivou experiências desse tipo no Terceiro Reich, que se propôs a elaborar um plano de purificação racial, marca do holocausto judeu", ressalta Maria Luiza Tucci (O racismo na História do Brasil: mito e realidade. Ática: São Paulo, 1994, p.22, Col. História em movimento).

Assim, as intervenções para o melhoramento das gerações futuras, ferem os princípios da Declaração do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, onde diz que a "liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem". Com isso, é perceptível no discurso dominante que negros, índios, orientais, judeus etc, eram considerados "raças inferiores". Por isso, foi posto em prática o branqueamento da nossa sociedade. Portanto, tais posturas e condutas foram muito mais que apenas discriminação ou preconceito racial, foram a violação dos direitos humanos.


Por José Lima Dias Júnior.








O último dos cangaceiros





O ex-cangaceiro Moreno com o historiador baiano João de Sousa Lima (Foto: blog do historiador João de Sousa Lima).


Lira Neto*


Leio no jornal: aos 100 anos, morreu Moreno, um dos últimos cangaceiros do bando de Lampião. Não sou de desejar a morte de ninguém, mas devo admitir que, nesse caso, sinto-me tentado a dizer: já vai tarde.

Quem dera tivesse ido embora com ele a ignorância cavalar de todos os sociólogos, historiadores, cineastas, jornalistas e escritores que, ainda hoje, por estupidez ideológica, ranço acadêmico ou ingenuidade histórica, insistem em glamourizar o cangaço.

O pernambucano Moreno - José Antônio Souto, no registro civil - era um facínora. Mas morreu paparicado, recebido com festa e como herói na cidade cearense de Brejo Santo, onde passou parte da adolescência até enveredar para a vida do crime e se escafeder para os cafundós da Paraíba.

Moreno matou 21 homens, segundo suas próprias contas. Há pouco, quando estava prestes a esticar as canelas, deu entrevistas nas rádios locais como uma celebridade, foi saudado por cantadores populares e abraçou a família sorridente, que não escondeu o orgulho pela notoriedade e pela fama de valentão do parente ilustre.

Uma miopia conceitual é responsável, em grande parte, pela mitificação desses bandidos que roubavam, seqüestravam, matavam, estupravam e viviam à sombra do coronelismo e do latifúndio.

Na década de 60 e 70 do século passado, tornou-se moeda corrente nas universidades a interpretação canhestra de que a violência imposta aos nordestinos por gente sanguinária como Lampião, Corisco, Azulão e outros celerados menos famosos como Moreno fosse uma resposta natural - e positiva - à violência social endêmica do sertão.

Os cangaceiros seriam, conforme tal viés, os Robin Hoods da caatinga. Ou, melhor dizendo, seriam "bandidos sociais" - para usar o termo então tomado emprestado ao historiador norte-americano Eric Hobsbawm, que conferiu certo verniz intelectual ao que, no fundo, nunca passou de um atestado de miséria teórica.

Lastreados em um marxismo mal lido e mal digerido, cientistas sociais brasileiros passaram a querer atribuir ao cangaço até mesmo certa nobreza de princípios e alguma justiça nas ações. Lampião passou a ser o rebelde primitivo, o justiceiro romanesco, o paladino dos fracos e oprimidos.

Bem antes disso, em 1935, a Aliança Nacional Libertadora já citava Lampião como um de seus inspiradores políticos. Trinta anos depois, Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, iria pelo mesmo caminho e, num surto de desvario histórico, chegaria a dizer que Virgulino Ferreira da Silva foi "o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e arbitrariedade".

Ora, como se o mesmo Virgulino não dispusesse de coiteiros poderosos, os coronéis sertanejos que lhe ofereciam armas, guarida e munição, em troca do serviço de milícia proporcionado pelo bando, o que garantia a inviolabilidade de seus domínios feudais.

Também data dos anos 60 do século passado um livreto de poucas páginas e de ideias ainda mais ralas. Superestimado durante muito tempo, "Cangaceiros e Fanáticos", de Rui Facó, tornou-se uma espécie de bíblia engajada para os "estudiosos" do tema, ao pregar que o cangaço era "um exemplo de insubmissão" e "um passo à frente para a emancipação dos pobres do campo".

Felizmente, uma bibliografia mais contemporânea devolve os cangaceiros a seu devido papel na história: o de bandoleiros carniceiros. É o caso de "Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil", de Frederico Pernambucano de Mello, arguto pesquisador de história social da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. A obra serve de providencial colírio desembaçador aos que ainda insistem, mesmo hoje, em enxergar Lampião através de lentes românticas.

Em um dos capítulos mais instigantes do livro, o autor expõe a tese do "escudo ético", ao desvendar a necessidade que os cangaceiros tinham de justificar aos próprios olhos - e aos olhos de terceiros - suas ações criminosas, sob o pretexto da lavagem da honra ofendida e do desejo de vingança.

Com efeito, no caso de Moreno, o cangaceiro centenário que acaba de morrer, o "escudo ético" seria proveniente da surra que ele levou da polícia na juventude em Brejo Santo, ao ser acusado - injustamente - do roubo de um carneiro. É o que nos conta a reportagem do jornalista Antônio Vicelmo, publicada neste mesmo Diário, na última quarta-feira.

Tão logo se viu livre da cadeia, Moreno teria matado o homem que o denunciou e que seria o verdadeiro ladrão do bicho. Pronto. Estava justificada, sob o abrigo de um providencial escudo ético, a entrada de Moreno para o cangaço. O que a partir daí passou a ser um meio de vida ilegal, violento e desonesto, estaria plenamente abonado.

Não há dúvidas de que o cangaço, com sua crônica interminável de atrocidades, truculências e selvajarias - que, de fato, só encontrava equivalente na ferocidade das volantes -, ainda seja capaz de fornecer material copioso para historiadores, jornalistas, escritores, cineastas e ficcionistas.

Afinal, paralelo ao regime de terror que infundiam, os cangaceiros também irradiavam fascínio com sua indumentária ostensiva, sua aura de implacáveis combatentes, seu cotidiano repleto de aventuras e perigos. Em uma terra em que a valentia, a macheza e a falta de polidez são considerados atributos positivos - e onde a "honra manchada" ainda desculpa o uso da violência - os cangaceiros tornaram-se, entre nós, os ícones máximos da audácia.

Quando estive recentemente na cidade potiguar de Mossoró, embasbaquei-me com o realmente impressionante Memorial do Cangaço, um dos orgulhos dos moradores do lugar, que fazem questão de mostrá-lo aos visitantes, com incontida vaidade. Segundo consta, Mossoró foi a única cidade nordestina a colocar o bando de Lampião para correr.

Contudo, no lugar de se exaltar a decantada resistência dos mossoroenses, tema de um painel fotográfico apenas secundário, a grande estrela do Memorial do Cangaço potiguar é o próprio Virgulino e sua companheira, Maria Bonita, cujas imagens aparecem em painéis gigantescos, de vários metros de altura.

Fico imaginando, daqui a algumas décadas, no Rio de Janeiro, quando alguém pensar em erguer um memorial à guerra contra o narcotráfico, se os painéis principais exibirão a imagem dos bandidos em tamanho gigante - e não das vítimas que eles fizeram com seu negócio sujo.




Fonte: Jornal Diriário do Nordeste, 10/09/2010*

domingo, 12 de setembro de 2010

A religiosidade afro-brasileria


A história do povo negro no Brasil nos remete a um entendimento da cultura africana, moldada dentro de costumes e práticas do universo cultural e religioso dos cultos afro-brasileiros.

Em se tratando de religião, é mister dizer que a questão da nossa identidade cultural perpassa pelo aspecto da religiosidade, seja enquanto manutenção da ordem dominadora ou enquanto resistência. No campo religioso, os cultos afro-brasileiros nos possibilitam ter uma visão dos aspectos sócio-culturais do povo negro no contexto religioso, sagrado. Quanto a isso, vale observar que, desde o Brasil-Colônia, as práticas religiosas, na sua maioria, mantiveram-se de maneira clandestina. Na realidade, usaram-se meios repressivos e discriminatórios para acabar com a religião negra. Porém, o que se viu foi à religião oficial manter-se como dententora do domínio do culto. Por último, logramos afirmar que, à religião enquanto fenômeno universal e cultural, no espaço e no tempo é, transmissora e conservadora de manifestações culturais. Por isso, se buscamos construir uma sociedade em que todos tenhamos os mesmos direitos e deveres, é necessário à desconstrução de conceitos, ideias e imagens negativas forjadas ao longo do tempo quando se refere à valorização da história dos povos africanos e da cultura afro-brasileira.

Cultos afro-brasileiros:*

"Os cultos afro-brasileiros são constituídos pela mistura das tradições religiosas dos povos africanos nagô, bantu, ioruba e jeje, trazidos com os escravos para o Brasil, com elementos das tradições indígenas e o catolicismo. Proibidos de praticar sua religião, os escravos associam seus rituais e divindades aos rituais e santos da Igreja Católica, produzindo um forte sincretismo religioso.

Candomblé: Predominante na Bahia, o candomblé é a religião da nação africana Ioruba. As principais divindades são Olorum, deus supremo, criador de Obatalá (o Céu) e de Odudua (a Terra). Da união dessas divindades nasceu Iemanjá (as Águas) e Aganju (a Terra firme) que, por sua vez, são os pais de Orungão (a Ar).

Orixás e santos católicos: Os orixás são divindades do candomblé ligado as forças da natureza e a certos aspectos da vida humana. O principal é Oxalá, uma manifestação de Olorum. Algumas divindades são associadas aos santos católicos: Ogum (deus do ferro e da guerra) é Santo Antônio ou São Jorge; Omolu (deus das doenças) é São Lázaro; Oxumaré (a serpente) é São Bartolomeu; Oxossi (deus da caça) é São Jorge; Xangô (deus do trovão) é São Jerônimo. As três mulheres de Xangô são Iansã (deusa dos ventos e das tempestades), associada a Santa Bárbara; Oxum (deusa das fontes e da beleza), é Nossa Senhora das Candeias e Oba (deusa dos rios). O panteão do candomblé inclui também Exu, mensageiro dos deuses, entidade de transformação associada ao mal e à figura do demônio.

Cultos do candomblé: Os cultos às divindades são realizadas nos terreiros e dirigidos por pai-de-santo (babalorixá) ou mãe-de-santo (ialorixá). Alguns rituais com oferendas de animais sacrificados aos orixás são restritos aos iniciados. Nos cultos abertos, são feitos oferendas e consultas aos orixás através dos búzios jogados pelo pai ou mãe-de-santo. O culto é marcado pelos diferentes ritmos dos atabaques e cantos, e, se diferenciam de acordo com o orixá cultuado.

Umbanda: A umbanda também tem sua origem na mistura de tradições religiosas africanas, indígenas e católicas. Além dos orixás, cultua os caboclos ou preto-velho, espirito dos antepassados que servem de guias ou conselheiros aos fiéis. Os rituais são semelhantes aos do candomblé. Alguns grupos assimilavam elementos do espiritismo, dando origem á umbanda de mesa e a umbanda de salão, onde os pontos dos orixás, atabaques e jogos de búzios são substituíos pelas sessões de passe e de consulta aos espíritos através de médiuns." (Almanaque Abril, págs. 738-739, Ano/1995).

Assim sendo, a realidade sócio-cultural do povo negro, bem como dos afro-brasileiros está marcada pelo processo de resistência constante aos ataques da sociedade impregnada de preconceitos racistas. Portanto, a religiosidade do povo negro, não deve representar o centro da marginalidade, mas o local de manifestação e manutenção da cultura afro-brasileira.


Axé para todos!!!

Texto adaptado pelo Prof. José Lima Dias Júnior.


quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A escravidão no Brasil

http://www.youtube.com/watch?v=YaOKB5wl58U&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=CT0j_rQJ2k8

80 Anos da Revolta de Princesa e da morte de João Pessoa

Claudio Roberto de Souza*



Em 28 de fevereiro de 1930 a vila do Teixeira, sertão da Paraíba e fronteira com Pernambuco, foi invadida pelas tropas da polícia estadual do presidente João Pessoa. Era uma retaliação pelo rompimento político com o seu governo levado a cabo pelo coronel José Pereira, líder político do município de Princesa e arredores e o início da Revolta de Princesa, que se arrastaria por cinco meses até o assassinato do próprio João Pessoa. Em meio ao conflito, no início de junho o coronel promoveu a independência do município com direito a hino e bandeira próprios. Em que pese o tom pitoresco, os fatos estão situados em meio a um intrincado movimento de interesses políticos e econômicos e representaram um sinal do declínio do poder dos coronéis na vida política brasileira.

João Pessoa assumiu o governo da Paraíba em 1927 indicado pelo seu tio, Epitácio Pessoa, que já havia sido presidente da República e era o líder da oligarquia paraibana. Outro sobrinho, Francisco Pessoa de Queiroz, foi preterido na disputa e mudou-se para o Recife onde se afirmou como empresário e político, mas sem desistir de influir na vida paraibana. Ao assumir o governo, tomou medidas no sentido de reprimir o clientelismo que marcava as relações entre o governo estadual e os coronéis nos municípios. De fato, não respeitou indicações de mandatários locais para nomeações de cargos públicos, apreendeu armas e cobrou impostos de aliados e opositores indistintamente. O tesouro estadual, por sua vez, vinha de uma severa crise do antecessor, João Suassuna, e a arrecadação era baixa. O comércio mais importante ocorria entre as regiões interioranas e os estados vizinhos, sem que as mercadorias viessem para o litoral. João Pessoa quis forçar a realização deste comércio através da própria capital, permitindo assim uma maior cobrança de tributos. Para isso criou pedágios, barreiras alfandegárias e altas tarifas para os produtos que passassem pelas fronteiras interioranas, reduzindo simultaneamente as taxas para os que fossem dirigidos ao porto da capital. Essas medidas desagradaram não apenas os comerciantes paraibanos, mas também a praça do Recife, cuja reação foi liderada por Pessoa de Queiroz através das páginas de seu jornal. João Pessoa feria assim, a base do compromisso coronelista da República Velha, o reconhecimento da figura do “coronel” como intermediador dos investimentos e nomeações para cargos no município, ao mesmo tempo em que procurou redefinir os eixos geográficos da economia paraibana.

O coronel José Pereira rompeu com João Pessoa depois de este preterir o grande aliado de Pereira, o ex-governador João Suassuana, ao compor a chapa de candidatos a deputados e a senador no estado. As relações estremecidas ficaram insustentáveis depois que a polícia prendeu vários membros da família Dantas, também aliados do coronel de Princesa, na Serra do Teixeira. Nesse momento, vários dos Dantas exilaram-se no Recife. A sedição foi apoiada, tácita ou diretamente, pelos Pessoa de Queiroz e pelo presidente de Pernambuco, Estácio Coimbra, aliado aos paulistas contra Vargas/João Pessoa.

Após vários meses de lutas, João Dantas, vivendo no Recife, teve a sua residência e escritório de advocacia na capital da Paraíba invadidos pela polícia e parte dos documentos apreendidos foi publicada pelo jornal A União, quase um diário oficial do estado. Vieram à luz detalhes de suas articulações políticas e de suas relações com a jovem Anayde Beiriz. Em uma época em que honra se lavava com sangue, Dantas sabendo que João Pessoa estava de visita ao Recife, saiu em sua procura para matá-lo. Em 26 de julho ao final da tarde, João Pessoa tombou na Confeitaria Glória ao lado da Praça Joaquim Nabuco, no Centro da Cidade. João Dantas foi capturado e preso na Casa de Detenção, onde também cairia assassinado durante os distúrbios da Revolução de 1930.

A morte de João Pessoa pôs fim à sedição de Princesa, que perdeu seu objetivo. Mas provocou um efeito inesperado. Vargas perdeu a eleição para o paulista Júlio Prestes, e as tentativas de conspiração para um golpe já haviam sido rejeitadas pelo próprio e também por Pessoa. O assassinato, entretanto, reacendeu os ânimos. O crime foi apresentado como obra dos perrepistas, o Partido Republicano Paulista, e em 3 de outubro Washington Luis foi deposto e a República Velha sepultada. José Pereira e muitos outros fugiram de Princesa e viveram pelos próximos anos em muitas cidades diferentes, embora seus descendentes continuem disputando as eleições locais até hoje.


*Aluno do mestrado em história/UFPE