quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ferra do Gado no Sertão nordestino




Tradição do sertão nordestino, a Ferra do Gado é uma prática introduzida pelos colonizadores portugueses e que consiste em marcar os animais. Dramático, o contexto em que ele é realizado é explicado em detalhes pelo historiador Benedito Vasconcelos Mendes neste ensaio.

Por Benedito Vasconcelos Mendes — Engenheiro agrônomo, mestre, doutor, membro correspondente da Academia Cearense de Letras, sócio da Academia Mossoroense de Letras, sócio-correspondente da Academia de Letras e Artes de Sobral e da Academia Apodiense de Letras
redacao@nordestevinteum.com.br


No sertão quente e seco do Nordeste brasileiro, o costume de marcar os animais domésticos, especialmente os bichos de pelo (mamíferos), foi introduzido pelos colonizadores portugueses e, ainda hoje, é usado na região. Os bovinos, equinos, asininos e muares são marcados com ferro em brasa, enquanto as miunças (ovinos, caprinos e suínos) são assinaladas com cortes nas orelhas. Os bovinos são ferrados com dois ferros diferentes; um para indicar o lugar onde está localizada a fazenda de criar, e o outro para indicar o proprietário da rês. O ferro do local é denominado ferro de ribeira, ferro de freguesia, ferro de município ou carimbo de município, e é marcado, geralmente, na coxa ou na anca, no lado esquerdo do animal.


A denominação mais antiga é a de ferro de ribeira, em alusão ao rio principal  que banhava a região onde a fazenda estava localizada. Na época da colonização do Brasil, as datas de terra doadas pela Coroa Portuguesa aos colonizadores eram localizadas nas margens dos rios intermitentes (temporários), para garantir água potável às famílias das fazendas e para dessedentar o gado. O tamanho da fazenda, geralmente, era de 3 léguas (18 quilômetros) de comprimento por uma légua (6 quilômetros) de largura, sendo meia légua (3 quilômetros) para cada margem do rio ou riacho existente no lugar. A denominação ferro de ribeira estava relacionada à ribeira (terreno drenado por um rio) do rio principal da região. Ribeira equivale ao que chamamos hoje de vale. Atualmente, dizemos vale do rio Acaraú, vale do  Piranhas/Açu, vale do Jaguaribe...


Com o passar do tempo, foram criadas as freguesias, ou seja, as divisões administrativas da Igreja Católica, que, à época, era vinculada à Coroa Portuguesa, daí que a freguesia era considerada a menor divisão administrativa do território colonial brasileiro. Cada freguesia, ou tinha um padre residente, ou recebia, periodicamente, a visita de um padre, que percorria as fazendas e vilas, realizando as tradicionais desobrigas. O padre escolhia uma determinada fazenda que possuísse uma capela, e se arranchava durante alguns dias naquele lugar, onde eram realizados os ofícios religiosos (celebrações de missa, confissões, batizados, casamentos e outros atos católicos).


As famílias dos fazendeiros e dos vaqueiros das fazendas vizinhas também participavam das celebrações religiosas, ficando, assim, desobrigadas, por um ano, de algumas obrigações estabelecidas pela Igreja, e que só podiam ser realizadas por um padre, como confissão e celebração de missa. Como visto, a denominação ferro de freguesia é mais nova do que a de ferro de ribeira. Com o aumento da população, as comunidades se transformaram em cidades, e os ferros de freguesia passaram a ser usados obedecendo à área geográfica de cada município, e a ser chamados, também, de carimbo do município, ou ferro do município, embora a denominação ferro de freguesia seja, ainda hoje, a mais usada.



Detalhes dos ferros


Oferro de freguesia geralmente é representado por uma letra ou, mais raramente, por um desenho simbolizando alguma coisa relacionada ao lugar. A letra pode ser a inicial do nome de um rio que banha a região. Os municípios banhados pelo rio Aracatiaçu, localizado na zona norte do estado do Ceará, como Sobral, Miraíma, Itapipoca, Amontada e Irauçuba, têm como ferro de ribeira duas letras “A”, sem o traço horizontal do meio, um dos quais é invertido, formando um losango, que significa as letras iniciais de Aracati e açu (Aracatiaçu).



Um  outro exemplo é o ferro da ribeira de São Gonçalo, no Rio Grande do Norte, que é o “P” de Potengi, rio que corta o referido município. A letra pode significar a inicial do nome do padroeiro ou da padroeira da cidade, como é o caso de Lajes-RN, que tem como ferro de freguesia um I, em referência à Imaculada Conceição, a padroeira deste município. A letra do ferro de freguesia pode expressar,  também, a inicial do nome do município, como ocorre em relação a Massapê-CE, cujo ferro do município é um “M”.


Às vezes, o ferro de freguesia é formado por um desenho e uma letra, como se observa relativamente ao município cearense de Morrinhos, que tem como padroeiro o Sagrado Coração de Maria, e como ferro de freguesia o desenho de um coração unido à letra “M”. O município litorâneo de Aracati-CE tem como ferro de freguesia uma cruz, símbolo da Igreja Católica, pois sua antiga denominação era Arraial da Santa Cruz do Aracati.  São, portanto, variadas as motivações para a escolha do desenho do ferro de freguesia. Cada município possui o seu ferro, cujo desenho era registrado na Prefeitura Municipal e na Secretaria de Agricultura do Estado, de modo que se podia identificar a origem de uma rês pela marca característica de cada município.


Não é raro dois ou mais municípios possuírem o mesmo ferro de freguesia. Isso ocorre quando um município, desmembrado de outro, resolve continuar com o ferro que já era usado na área ou por razões distintas. Às vezes coincide mais de um município possuir idêntica motivação para a escolha da marca da freguesia, como por exemplo, quando seus nomes se iniciam com a mesma letra, ou quando o padroeiro, ou padroeira do município, for o mesmo santo ou santa, ou, ainda, no caso dos antigos ferros de ribeira, os municípios serem banhados pelo mesmo rio. Os municípios cearenses de Fortaleza, Alto Santo e Sobral, possuem dois ferros de freguesia, cada um, todos os outros municípios apresentam apenas um.


Como já dito, a posse de gado graúdo (bovinos, equinos, muares e asininos) é garantida legalmente pela marca de ferrar do proprietário, que é posta no lado direito do animal.


Os ferros de fogo, geralmente, medem de 8 a 10 cm de diâmetro, com cabo de 30 a 40 cm de comprimento. Para não queimar a mão do vaqueiro, e ainda proporcionar maior apoio à pegada, a ponta do cabo é guarnecida de madeira, sabugo de milho ou osso. As marcas de ferrar gado são feitas de ferro batido, unido por cravos, trabalhadas pelos velhos ferreiros sertanejos. Cada fazendeiro idealizava o seu ferro de marcar boi, mas quase sempre ele aproveitava o caixão (desenho básico) do ferro do pai, que, por sua vez, aproveitara o do avô, este o do bisavô, e assim sucessivamente, de modo que os ferros de marcar a fogo o gado de uma mesma família são parecidos uns com os outros.


Por tradição, a diferenciação entre os ferros dos diversos familiares consiste em pequenas alterações denominadas “diferenças”, e que possuem formas (e nomes) particulares, como lua, flor, asa, martelo, puxete, flecha, e muitos outros, pois, ao todo, são mais de 20 diferenças, consagradas pelo uso da heráldica das marcas de ferrar gado, no Nordeste brasileiro. A expressão muito usada no sertão “ferro avoengo” significa ferro antigo, ferro idealizado pelos antepassados, que teve origem nos avós, e que ainda hoje mantém o caixão do ferro primitivo. Quando uma rês era vendida, o ferro do novo proprietário era colocado acima ou à direita do ferro antigo. Se fosse vendida para uma pessoa de outro município, a remarcação (contraferra) da nova freguesia também era feita acima ou à direita da marca da freguesia anterior.



Criação de gado foi determinante para o sertão do Nordeste


O sertão do Nordeste brasileiro foi povoado graças à criação de gado. A colonização do sertão semiárido foi tardia e traumática. Os índios tapuias, especialmente os da família linguística tarairiu, que habitavam às margens dos rios temporários da região, abatiam e comiam o gado bovino e cavalar, e flechavam os fazendeiros e vaqueiros.




A maioria das antigas fazendas de criar gado localizadas no sertão semiárido nordestino só foi estabelecida depois da Guerra dos Bárbaros (1687-1704), quando se exterminaram, ou expulsaram, os fortes, altos, corajosos, valentes, vingativos e canibais guerreiros tarairius e se escravizaram os curumins e as cunhãs, principalmente os que viviam nas margens dos rios secos dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Nessa época, a população nordestina era rarefeita e, nas fazendas, viviam poucas pessoas, já que a principal atividade econômica que nelas se desenvolvia era a pecuária, que absorve pouca mão de obra, de modo que um só vaqueiro era suficiente para tratar grande número de reses. As fazendas eram indivisas, pois não se usavam cercas; o gado era criado solto, extensivamente.


Uma vez por ano, após o período chuvoso, quando desaparecem as moscas varejeiras, causadoras das bicheiras, os proprietários das fazendas vizinhas, em regime de mutirão, juntavam o rebanho em uma determinada fazenda, para “apartar” o gado (separar as reses de cada proprietário), ferrar os garrotes e garrotas e castrar os novilhotes. Cada fazendeiro se deslocava, a cavalo, acompanhado por seus vaqueiros vestidos a caráter, gibão, peitoral, chapéu de couro, guarda-pés e guarda-mãos, rumo à fazenda escolhida para o evento. Era um dia de muito trabalho e, também, de muita alegria. O proprietário da fazenda escolhida matava um boi e chamava músicos (rabequeiros, violeiros, sanfoneiros, banda de pífano ou banda cabaçal) e repentistas, a fim de animar a noite.


Esses eventos anuais, de trabalho e diversão, deram origem às vaquejadas festivas, que se tornaram tradicionais em todo o sertão do Nordeste. Nesses acontecimentos, a ferra do gado era o que exigia mais perícia, pois os ferros de cada proprietário eram colocados em uma grande fogueira, ao lado, e quando a rês era identificada pela aparência, comparando a filha com a vaca-mãe, que já tinha sido marcada em anos anteriores, o proprietário, ou um de seus vaqueiros, trazia o ferro incandescente e marcava a rês derrubada e dominada pelos outros vaqueiros.

No lado esquerdo do animal era ferrada a freguesia do local, que era a mesma para todos os fazendeiros, e no lado direito, a marca individual de cada proprietário. Os ferradores eram dotados de grande habilidade. O ferro caldo deve queimar somente o couro, porém sem borrar a marca, ou seja, sem falhas, de modo a deixar bem visível o desenho do ferro. Se, por algum motivo, a marca apresentasse falhas, estas eram corrigidas com o giz (tipo de buril de ferro candente usado para corrigir falhas no momento da ferra do rebanho). A emenda era feita a mão livre.

As fazendas não possuíam brete de contenção. Cada rês era laçada com relho de couro cru e puxada até encostar no mourão de miolo de aroeira, localizado no centro do tosco mas seguro curral de pau a pique, onde era derrubada pelo aperto, no vazio (macaco), de uma corda de cabelo de rabo de bovino (vassoura). Esse tipo de corda trançada de cabelo é conhecido por sedenho, e é muito usado para arrelhar o bezerro por ocasião da ordenha (arrelhador).


A rês, após ser laçada pelos chifres, arrastada para o mourão, derrubada e dominada pelos vaqueiros, era ferrada a fogo. Muitas vezes, para levar o rebanho para o curral, era necessário colocar, em alguns touros mais ariscos, uma máscara (careta), com a finalidade de serem tangidos mais facilmente. Para colocar a máscara, a rês tinha que ser derrubada pelo rabo e dominada em plena Caatinga espinhenta e garranchenta. Nesses casos, somente os vaqueiros mais experientes eram capazes de “pegar a unha” o novilho bravo e forte no meio do mato. O cavalo, protegido com peitoral de sola, e os vaqueiros com seu traje típico (gibão, peitoral, perneiras, chapéu de couro, guarda-pés e guarda-mãos) enfrentavam os espinhos e os garranchos da vegetação agressiva regional. O calor, a sede, a poeira, o mato seco e fechado e o touro bravio e robusto eram vencidos pelo corajoso, forte, tenaz e hábil vaqueiro sertanejo.



Vestimenta do vaqueiro


De todas as regiões geográficas brasileiras, o único vaqueiro que possui vestimenta especial é o do sertão seco nordestino, visto que, para manejar o gado na caatinga desfolhada, seca, fechada, garranchenta e espinhenta é necessário proteger o cavalo e o vaqueiro das estrepadas dos tocos pontiagudos e dos espinhos das cactáceas, bromeliáceas e das inúmeras espécies arbóreas vegetais armadas com afiados espinhos.

É costume do sertanejo do semiárido nordestino marcar com o seu ferro as portas, janelas, gamelas, mesas, mourões de porteira de curral, caixões de guardar farinha e rapadura, formas de rapadura, baús e até os queijos feitos na fazenda. A marca de ferro quente identifica o dono do gado e de outros bens. É o símbolo do criador de gado. É um tipo de brasão, conforme a expressão “Heráldica Sertaneja” criada por Gustavo Barroso.


Algumas instituições filantrópicas ou confessionais, como santas casas de misericórdia, conventos, escolas e outras, também possuíam seus ferros de gado.


Na literatura existem três importantes livros sobre marcas de ferro a fogo. O primeiro livro publicado sobre esse tema foi do grande escritor paraibano Ariano Suassuna, que escreveu Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja (Recife, editora Guariba, 1974). O segundo foi do potiguar Osvaldo Lamartine de Faria, emérito estudioso das coisas sertanejas, intitulado Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte, lançado em 1984 pela Coleção Mossoroense (Vol. CCXLI, Série C). A última publicação é o excelente livro Rudes Brasões - Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, do intelectual cearense Virgílio Maia, publicado pela Editora Ateliê Editorial (2ª edição revist
a e ampliada, 2004).

Fonte:  http://www.nordestevinteum.com.br/

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