Por Márcio de Lima Dantas
(Professor de Literatura Portuguesa da UFRN, ensaísta e tradutor).
A estátua do ex-governador Dix-Sept Rosado Maia ergue-se no centro da cidade de Mossoró (RN), na praça vigário Antônio Joaquim, conhecida pela população como “praça do Cid”. Antes havia um busto dedicado ao sacerdote que nomina o espaço; hoje, essa pequena estátua de bronze foi transferida para o lado direito da catedral de Santa Luzia. O traçado inicial da praça foi modificado inúmeras vezes, exceto no que diz respeito à estátua, que permaneceu intacta, e sempre no mesmo lugar.
Procuraremos demonstrar neste trabalho as interações dos diversos elementos constituintes do conjunto escultural de granito e bronze. Os monumentos erigidos por determinada sociedade a seus mitos, fundadores, heróis ou eventos históricos não apenas detêm um discurso por meio de suas formas organizadas, a partir de uma sua própria lógica interna, mas, sobretudo, vivem através dos arquétipos que estão presentes e rememorados, propagando representações, sedimentando ideias, reforçando estruturas, que é o que podemos chamar de imaginário de uma cidade. Esse contorno de mitos, temas recorrentes, constelações de imagens, contém, em sua morfologia e sintaxe, sentidos latentes, ultrapassando de longe os signos empiricamente reconhecíveis. Dizem sem falar, repousando seus olhos sobre o cotidiano da cidade. Veem mais do que são vistos pelos apressados transeuntes que cortam a praça, trecho obrigatório de passagem.
O corpus a ser utilizado neste trabalho é unicamente a estátua do ex-governador Jerônimo Dix-Sept-Rosado Maia (1911-1951), um dos 21 filhos de Jerônimo Rosado e Isaura Rosado Maia. Prefeito de Mossoró (1948), governador do Rio Grande do Norte (1950). Cinco meses após sua posse, faleceu num acidente de avião, próximo à cidade de Aracaju. Concluiu apenas o antigo curso ginasial. Reputado como empreendedor ousado e administrador, pessoa pragmática e vinculada à ação, diz-se que com dezessete anos já gerenciava empresas da família (do ramo do gesso). Seus pendores estavam circunscritos a um âmbito semântico tradicionalmente masculino: esportes náuticos, mecânica, marcenaria e aviação. Quando prefeito de Mossoró, empreendeu projetos na área de infraestrutura: estradas, barragens e escolas Inscreveu seu nome na história da cidade como pessoa de ideias avançadas para a época. Na área da cultura, criou o Museu Municipal e a Biblioteca Pública.
Consideraremos a informação de que ao mito estabelecido significações complementares, reforçadoras e reprodutoras das instituições políticas e culturais (costumes, tradições, maneiras de ser, etc.), ao longo do tempo, vieram colar-se a isso Gilbert Durand chama de imperialismo mítico. Imagens, símbolos e metonímias encostam-se à metafora de base a que está subordinada a imagem. Quer dizer: o herói civilizador, com seus atributos do poder, atrai por meio de sua força simbólica outros elementos, que vão se adicionando ou se engendrando na paisagem ao redor. A lógica e a força simbólica do mito dispensam a realidade empírica, quer dizer, permanecem como um espaço, alimentando-se com o tempo de signos que reforçam suas energias. Trocando em miúdos, a representação traz em si a necessidade da forma, porém é também seu conteúdo. O meio não é a mensagem? Se começarmos, por exemplo, pelos materiais de que ela foi feita. O granito e o bronze são materiais feitos para durar, permanecer, conquanto detentores de um manancial simbólico capaz de alimentar muitas gerações.
Ao longo do tempo, a chamada “praça do Cid” foi-se constituindo em um superdiagrama da polis. Do conjunto escultórico, irradiam-se linhas semânticas para as quatro direções. Em contrapartida, os símbolos que constituem uma cidade, suas instituições e imagens foram se arrumando em torno da estátua, reforçando e confirmando nossa tese inicial de que o conjunto escultórico e suas adjacências organizam múltiplas formas do imaginário da gente de Mossoró.
Podemos fazer um breve passeio pela praça na qual está a estátua para ver o que podemos encontrar de paradigmas organizadores da vida social. Esclarecemos que o sintagma agora considerado, para efeito de nossa demonstração, não é mais a estátua, mas a cidade em sua totalidade.
Do lado esquerdo, encontra-se o prédio do Poder Legislativo municipal, a Câmara do Vereadores (alojado atualmente no que fora durante muito tempo o melhor hotel da cidade). Ora, os que estão hospedados num hotel estão de passagem, como a maior parte dos vereadores, que quase não consegue se reeleger. E também a mais famosa livraria da cidade. Um pouco ao lado, a Coletoria Estadual, responsável pela coleta e pelo controle dos impostos. Do lado direito, o Banco do Brasil, o principal e mais conhecido banco público. Atrás, o cinema e teatro, simbolizando a cultura. Finalmente, a estátua está em frente à catedral de Santa Luzia, marcando o lugar da mais importante religião (atrás da igreja, encontra-se o Mercado Público). A maior parte das instituições que constituem a fisionomia da polis orbitam em torno do conjunto escultórico, como a significar que fazem parte de um mesmo conjunto de sentidos e pragmáticas. Com efeito, a estátua é o centro de uma simetria radial de atividades mentais da cidade, uma poderosa força centrípeta que contamina e atrai para seus arredores signos que a legitimam e revigoram seus arquétipos, confundindo história e mito. Ou, como disse muito bem Gilbert Durand: “A história e os seus documentos vêm deitar-se no leito eterno das estruturas mentais”.
Em suma, o pensador francês nomina esse complexo simbólico síndrome do gládio. Tal área semântica lança seus vetores em direção às coisas que dizem respeito ao imóvel, ao sólido, ao rígido, na medida em que sua signância tem sempre a ver com discernir e separar, refratando tudo o que tem relação com o intuitivo e com o movente (remetem ao universo do noturno e do feminino). Ora, a figura do governador e sua constelação de signos seria a própria razão ordenadora, na medida em que, como elemento civilizador, pleno de índices cristalizando-se em torno do universo masculino, trouxe avanços em vários campos da cidade. De outra parte, é curioso constatar a exata simetria bilateral do monumento. Ora, sabemos muito bem, e na pele, que nunca houve, tampouco haverá, regularidade nem muito menos simetria na condição humana. Até parece que o conjunto arquitetônico deseja ordenar a realidade, a história, sugerindo uma moral, uma determinada forma de ser.
Para não estender conversa, o monumento, de resto, se constitui em um grande reservatório de figuras pertencentes à paisagem mental da cidade. A coerência de todas as imagens, na medida em que constatamos que todas estão submetidas ao mesmo regime diurno, segundo a classificação de Durand, discorrem sobre o pensamento contra as trevas, da animalidade e de Cronos, o tempo mortal. Símbolos ascensionais por excelência, sintetizados na figura heróica do lutador erguido contra as trevas e contra o abismo. Em suma, signos solares, congregados no entorno da imagem do governador: a virilidade, representada na pose hierática e vertical, sobretudo no símbolo por excelência do falo, da masculinidade, aqui, no nosso caso, simbolizado pelo canudo que porta na mão. Por sua vez, evoca o bastão dos reis e imperadoras, atributo-símbolo da autoridade constituída. O gigantismo já foi explicado.
Cemitério de São Sebastião: excursus
Gostaria de chamar a atenção para o espantoso paralelismo entre o jazigo do governador Dix-Sept-Rosado no cemitério São Sebastião[1] e outros monumentos funerários dos indigitados grandes homens da humanidade. O sepulcro do governador retoma uma tradição da arte funerária associada aos grandes homens e heróis da pátria. O túmulo de mármore e produz, quase ipsis literis, o estilo do túmulo de Napoleão Bonaparte[2] e de seus generais, que se encontram na Igreja do Dôme, nos Inválidos, em Paris. Em Florença, na Itália, os túmulos da Capela dos Medicis[3] também obedecem a esse estilo. São urnas funerárias formadas quase por uma só pedra esculpida, retomando a tradição egípcia do sarcófago de pedra externo formado por apenas duas peças, num despojamento estilístico que parece querer resguardar a preciosidade de seu conteúdo.
Despojada, solenes, elegantes e de uma simplicidade clássica[4], essas urnas funerárias evocam de imediato a importância do morto. São quase abstratas: normalmente predominam linhas curvas circunscritas a um retângulo-paralelepípedo. Esse tipo de escultura tumular, imitando um caixão de defunto em suas formas, sugere ao espectador o silêncio, a contrição e o respeito pelo morto, na medida em que não existe nenhum elemento que desloque a visão para outra coisa que não a própria pedra esculpida em que dentro se encontram os restos mortais. Via de regra, são talhadas em pedras nobres, como o mármore negro, o pórfiro ou o alabastro. Ora, é inútil remarcar que tudo o que é abstrato, no universo da arte, se constitui em sugestão mais difícil de definir, sendo mais complicado para encontrar-se o significado que encaixe sobre o significante que está diante dos sentidos que o fruem. Tomemos apenas um exemplo da música, a forma de arte mais abstrata. Se compararmos o Concerto de Brandenburg n° 2 en Fa maior de Bach, com a Bachianas n° 5, de Villa Lobos, veremos quanto não é difícil saber que a segunda sugere estados anímicos assemelhados ao luto e à melancolia – dificilmente um ouvinte a associaria à alegria – , enquanto o primeiro, por lidar com acordes e harmonias não miméticas, digamos assim, adentra por áreas de nossa psicologia mais profunda, causando estados de indefinição, pois não conseguimos precisar de que se trata; sabemos apenas que a música adentra por regiões desconhecidas.
Outro signo bastante eloquente portador do sinete da importância do defunto é o lugar onde se encontra o túmulo. O cemitério é cortado por dois eixos em forma de cruz, dividindo-o em quatro partes. A pequena capela neogótica, cujo orago é S. Sebastião, se situa exatamente onde as duas linhas se cruzam. O túmulo fica numa das quinas das duas linhas, lugar de passagem dos transeuntes. Está exatamente no coração da cruz latina, evocando os sentimentos cristãos do governador, e quase obrigando os passantes a mirarem a belíssima pedra negra com o mapa do estado do Rio Grande do Norte ao fundo.
De outra parte, a morte do governador também é muito rica de significações reforçadoras do mito do herói. Morreu de uma morte moderna: como “gente rica” morre, de um desastre de avião, e, claro, só os ricos têm acesso a esse tipo de morte. Tipo de morte que retira, em parte, o trágico daquele que sofreu muito para morrer. É uma morte quase ascéptica. Estava num “pássaro de ferro”, estava no cimo, no alto, no céu, elementos que integram áreas do regime diurno.
Conclusões: a cidade e sua caprichosa letra
A cidade de Mossoró, como qualquer outra, escreveu sua própria caligrafia, deitando índices na geografia da cidade. Ao aceitar o presente ofertado pela cidade de Ceará-Mirim[5], que construiu o sóbrio monumento escultórico em homenagem ao ex-governador do estado Dix-Sept Rosado, filho da terra, caprichou na feitura das letras e dos números, revelando numerosos aspectos presentes em seu imaginário. A gravidade aparente da figura de bronze, expressa pela ausência de movimento em sua totalidade, especialmente no alto hieratismo do personagem principal, permanece como um dos atributos das outras estátuas: o silêncio e a não necessidade de se explicar, de se justificar. Queda-se no espaço sem talvez mesmo demandar uma deferência. De outra parte, esse silêncio detém um discurso pleno de idiossincrasias, inerentes a uma classe social e comprometidas com a reprodução do status quo. O silêncio da estátua, tão cantado pelos poetas em todas as épocas, aqui não serve, nem que se queira, para decalcar uma metáfora circundadora do indiferente contemplador do destino, das coisas que passam (e só ela quedando-se impermanente). Aqui o silêncio é interessado, pois a estátua vibra em sua aura como um grande reservatório de figuras pertencentes à paisagem mental da cidade, propondo didascálias, uma moral, dizendo da superioridade de uns sobre outros.
A história da cidade é como se fosse um rio subterrâneo, ininterrupto e calmo. Parece que nada o fará parar de escorrer. O rio Mossoró espelha muito bem a cidade: águas opacas, inermes, plácidas, limosas, com seus desvios, canais artificiais, sem mais o direito de uma cheia ou outra[6].
Retomaríamos mais uma vez, agora para encerrar nossa leitura, um dístico da poeta Orides Fontela, num poema em que trata da estátua:
Fluência detida do ser; forma
- apenas equilíbrio de ritmos.
[1] Túmulo do governador, no cemitério mais antigo de Mossoró.
[2] Ludovico Tullius Visconti (1791-1853), O túmulo de Napoleão I, Igreja do Domo, Inválidos.
[3] Capelas da Casa dos Medicis, Florença. Observem a forma dos dois túmulos de príncipes ladeando o altar-mor.
[4] Fazemos uso da classificação de Clássico e Barroco como duas categorias universais da arte. O clássico caracteriza-se pelo linear e pelo plástico, fechando a composição e propondo pensar a totalidade; encerrando a composição, reporta cada elemento ao todo.
[5] O monumento foi doado pelo município de Ceará-Mirim (RN).
[6] Lembramos que é prerrogativa do sagrado, de Deus, não se explicar, porque vale por si, não em relação a algo ou alguém. Vejamos o que disse sobrinha neta do governador, a deputada federal Sandra Rosado, na abertura de um seminário dedicado ao governador: “Somos o que somos: Rosado!” (ROSADO: 2001, p. 15). Frase extremamente curiosa e plena de simbolismo bíblico, não muito diferente do que disse Deus a Moisés, no monte Sinai: “Qual é o seu nome? Que lhes hei de responder? Deus disse a Moisés: ‘EU SOU O QUE SOU’” (Êxodo: 3, 13-14).
Fonte: www.cartapotiguar.com.br/
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