A Marcha das Vadias: subversão pós-moderna
24/07/2011 13:39
Por Alípio Sousa Filho
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN e Editor da revista Bagoas/UFRN
Muito boa a ideia da Marcha das Vadias, realizada também aqui em Natal, por iniciativa do Coletivo Leila Diniz, seguindo as marchas realizadas entre outras cidades brasileiras e do exterior. Trata-se aí de um trocadilho crítico, semiologicamente subversivo e, espera-se, também social e politicamente subversivo.
Não fosse por iniciativa de movimentos de mulheres e LGBT, nossas sociedades não discutiriam as questões de gênero, numa perspectiva crítica. Todo um discurso ideológico sobre gênero e sexualidade a atravessa e é reiterado continuamente por dispositivos como a família, a escola e a mídia, impedindo-a de ver até mesmo a gravidade de certas situações envolvendo a questão de gênero e sexualidade, que não diz respeito apenas às mulheres, mas igualmente a travestis, transexuais, gays e lésbicas. Estão aí, noticiados diariamente, humilhações, agressões e assassinatos de mulheres e de gays, lésbicas e trans, em razão de preconceitos e representações sobre masculino, feminino, sexualidades etc. O caso recente, no interior paulista, é paradigmático: agressões a pai e filho, que não sendo gays, foram “confundidos” como tais e agredidos, e tudo como se fosse muito natural a representação negativa do homossexual e da homossexualidade, que justificaria a agressão (“é que foram confundidos”). O carinho público entre dois homens deve ser suspenso, mesmo pai e filho, pois não é cena explicitamente heterossexual. A esfera pública de nossas sociedades, sendo inteiramente heterossexualizadas, não admite outras cenas que não sejam heterossexuais.
As concepções e as normas de gênero que predominam na sociedade estão fundadas na matriz do binarismo de gênero e na ideologia da heterossexualidade obrigatória (como tem denunciado estudiosos como Judith Butler, Adrienne Rich, Didier Eribon, entre outros). Esses dois dispositivos que são postos a funcionar cotidianamente por uma verdadeira máquina de fabricação de corpos, pensamentos, comportamentos e sujeitos são responsáveis pela produção de relações, preconceitos e discriminações, seja praticadas contra mulheres, seja contra gays, lésbicas, travestis, transexuais.
A violência contra as mulheres tem como causa a mesma matriz e ideologia que – separando o masculino do feminino, valorizando um e desprezando o outro, vendo-as como realidades dicotômicas, biológicas, naturais, inalteráveis, inintercambiáveis –, conduzem a sociedade para a consolidação de representações negativas do feminino, de depreciação das mulheres, gays e trans. Não fosse o trabalho de segmentos do movimento feminista e LGBT, o de algumas organizações sociais e o conhecimento que se produz na pesquisa universitária, não teríamos o pequeno debate que se faz sobre a opressão, a violência e a discriminação praticadas a partir de um viés de gênero, que termina também por incluir as sexualidades dissidentes da heteronormatividade hegemônica.
Grande engano pensar que as desigualdades de gênero e as discriminações que lhe são consequência estão resolvidas ou a caminho de sua solução, pelo fato de mulheres assumirem funções político-públicas, postos importantes no emprego, atividades de destaque na vida pública. Concepções e normas de gênero e sexualidade, reproduzidas pela matriz binarista e pela ideologia da heterossexualidade obrigatória que constroem a todos nós e nos mantêm capturados, devem ser enfrentadas e destruídas se queremos igualdade, liberdade e emancipação de todos em vista preconceitos e discriminações. No caso das mulheres, enquanto perdurar a depreciação do feminino e a valorização do masculino, e perdurar a crença que existe uma mulher biologicamente programada para a maternidade, a delicadeza, o cuidado com a esfera doméstica, elas continuarão sofrendo discriminações, sujeições, e mais intensamente se procuram romper com esses esquemas de pensamento e produção de condutas. A ideia de uma mulher biológica – e não socialmente construída, fabricada, no que se incluem a própria ideia do feminino e a sexualidade que se impõe a ela – torna as mulheres reféns de modelos e instituições que as mantêm subordinadas como sujeitos de desejo, sujeitos sexuais. Com a manutenção, por exemplo, da ideologia do “recato natural da mulher” ou do “mito do amor materno”, como tratou do assunto Elisabeth Badinter, às mulheres se subtrai o direito à livre sexualidade, ao aborto, à sua independência e emancipação. Justamente aquelas que fogem do modelo da subordinação são chamadas de “vadias”.
Mesmo muito ainda tendo que ser conquistado, pensando a maior parcela da sociedade e os muitos direitos que não são ainda garantidos, transformações importantes ocorreram. E, é fato!, estamos vivendo, mundialmente, mudanças revolucionárias no campo que poderíamos chamar de redefinições do simbólico. As novas tecnologias de reprodução, que dispensam relações sexuais, os casamentos gays, as novas configurações familiares, entre outros exemplos, são mostras de transformações ricas em potencialidades de alterações da ordem simbólica na qual se converte toda ordem social.
As lutas das mulheres, por sua emancipação, têm sido uma constante política nesse processo. Muitas mulheres se deram conta, como também homens – e não importando se mulheres e homens heterossexuais ou homossexuais –, que não é mais o caso de permanecerem submetidas a convenções sociais, culturais, históricas, institucionalizadas como padrões morais ou normas sociais, pela consciência que se tratam finalmente de construções inteiramente arbitrárias, epocais, contingentes, porque são humanas e sociais, nem divinas nem naturais, e, como tais, modificáveis, reversíveis. Essa compreensão da realidade, que o sociólogo Pierre Bourdieu chamaria de “tomada de consciência do caráter arbitrário do arbitrário cultural-social”, tem levado a que sempre mais indivíduos, embora lentamente, rompam com os esquemas de percepção e ação que os orientam na vida, que, aqui para a questão de gênero e sexualidade, trazemos através da referência à matriz binarista de gênero e à ideologia da heterossexualidade obrigatória, que definem nossas relações gerais com a sexualidade, as identidades de gênero, as representações do masculino e do feminino. Rupturas que, se não tendo conseguido produzir revoluções sociais e políticas, são exemplos daquilo que o sociólogo Michel Maffesoli chamou de “subversão pós- moderna” e que têm produzido bem-estar emocional e felicidade na vida de muitos, ao assumirem para si próprios o seu desejo, suas escolhas, opções, estilos de vida, o que não é menos importante e menos político.
As mudanças subjetivas têm efeitos práticos concretos na vida de todos e são, por isso, mudanças também políticas e sociais. Afinal, vadias e vadios, nos extravios das normas opressivas de gênero e sexualidade, o que querem é a felicidade como direito elementar do ser humano.
Fonte: Carta Potiguar (www.cartapotiguar.com.br)
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