As pesquisas genéticas confirmam o que historiadores e sociólogos já sabiam: a unidade da espécie humana. As raças não existem 
Verônica Bercht
As ciências biológicas, assim como as ciências  sociais, deram durante muito tempo estatuto científico ao racismo.  Nelas, ele baseava-se especialmente na afirmação de que a espécie humana  era composta de três grandes raças e cada uma delas tinha atributos  intelectuais e comportamentais específicos que justificavam uma  hierarquia biologicamente estabelecida. Quem pensava assim via na  prática social a comprovação dessa hierarquia. O conceito de raça – ou  subespécie – era, portanto, o alicerce científico para o passo seguinte,  o racismo e seu corolário, a superioridade racial de um grupo  privilegiado.  
A principal pergunta pertinente às ciências biológicas sobre esta  questão é: a espécie humana é, objetivamente, composta por raças  diferentes? Respondida esta pergunta poderíamos então partir para a  seguinte: uma raça é superior a outra?  
Essas questões receberam respostas diferentes ao longo dos últimos 200  anos. Hoje, o desenvolvimento e o acúmulo dos conhecimentos sobre a  evolução da espécie humana, fornecidos principalmente pela  paleoantropologia e pela genética, estabeleceram provas irrefutáveis  sobre a inexistência de raças na espécie humana e desmascararam a camisa  de força imposta por cientistas para adequar a realidade à prática  social e à ideologia.  
Podemos identificar duas posturas bem marcadas em relação ao  conhecimento científico. Uma delas considera o fato científico como a  revelação da verdade. Assim, o experimento científico, ou descoberta, é  apresentado como um fato isolado, sem relação com outros fatos,  científicos ou não, e totalmente alheio ao desenvolvimento científico e  histórico que o antecedeu, e o fato é então incorporado como uma  “verdade” científica que, por sua vez, é cultuada como solução para o  problema que suscitou a pesquisa.  
No outro extremo estão os que percebem que as promessas feitas com base  na “verdade científica” nem sempre se realizam; que sabem que a ciência é  feita por homens e mulheres com suas ideologias, e que, hoje, a prática  científica baseia-se nos mesmos mecanismos capitalistas que regem as  sociedades atuais. Por isso, negam a validade da metodologia científica  para a aproximação do conhecimento da realidade, que em última análise,  para eles, é inalcançável.  
Essas duas posturas, apesar de distintas, têm a mesma conseqüência:  invalidam a prática científica como instrumento para o conhecimento da  realidade, negam os benefícios que esse conhecimento pode representar  para a humanidade e, acima de tudo, impedem a análise crítica da ciência  atual. Com isso, esvaziam as propostas de luta para a democratização e  socialização dos conhecimentos científicos e de suas aplicações e para a  reorientação dos objetivos da prática científica, atualmente definidos  pela organização capitalista e neoliberal da sociedade.  
Para entendermos o estágio em que a ciência se encontra é necessário ter  em mente que por trás de toda prática científica estão as idéias, que,  por sua vez, são resultado do contato do homem com a natureza, com os  outros homens e suas criações. As ciências biológicas não são exceção à  regra. Elas também estão imersas no universo ideológico, e o debate  sobre a existência de raças biologicamente definidas na espécie humana é  uma demonstração de que a ciência e a ideologia são inseparáveis e de  como é tortuoso o caminho que nos leva ao conhecimento da realidade.  Mas, é, ao mesmo tempo, a demonstração de que a ciência pode nos dar  elementos importantes para o entendimento do mundo em que vivemos e  auxiliar na proposição de lutas para torná-lo mais justo e mais humano.  
A origem da variedade de seres que habitam nosso planeta é uma questão  fundamental das ciências biológicas. Elas têm, em sua origem, a  concepção religiosa judaico-cristã que estabelecia a origem divina das  espécies e, até 1858, quando Charles Darwin publicou A origem das  espécies e a seleção natural, acreditava-se que elas eram fixas, criadas  por Deus, e as variações entre os indivíduos de uma mesma espécie não  passavam de imperfeições nas criaturas, provocadas pelas falhas do mundo  material. Os mesmos argumentos explicavam a existência das raças  humanas e estabeleciam os níveis hierárquicos entre elas. A versão  bíblica (Gênesis 9, 18-27) conta que quando Noé e seus filhos Sem, Cam e  Jafé saíram da Arca, Cam cometeu uma irreverência contra o pai que,  para puni-lo, o condenou ao sofrimento no tórrido continente africano e à  eterna escravidão: “Maldito seja Canaã! Que se torne o último dos  escravos dos irmãos”. A descendência dos três filhos de Noé teria  formado, segundo essa interpretação religiosa, as raças que se  espalharam pelos diferentes continentes.  
Essa concepção predominou nas ciências biológicas até mesmo depois de  Darwin ter mostrado que as espécies não eram fixas, mas resultado de um  longo processo de transformações sucessivas. Numa época em que, de um  lado, a prática da escravidão estava no auge e, de outro, a ciência não  dispunha de elementos para compreender a evolução humana – a  paleoantropologia ainda engatinhava à procura de fósseis dos ancestrais  humanos e não se conheciam os mecanismos de herança das características  dos seres vivos – a ciência biológica européia, é bom lembrar, associava  traços culturais que não conseguia entender à variedade física dos  povos, alegando que eram determinados pelo clima onde esses povos  viviam. Assim, os traços culturais dos povos asiáticos e africanos eram  associados às suas características físicas e como essas culturas eram  consideradas inferiores à cultura européia, que então procurava se impor  nas diversas colônias, os povos mongolóides e negróides eram  considerados inferiores.  
Pode-se dizer que essas idéias predominaram nas ciências biológicas até o  início do século XX, acaçapando as visões discordantes. O  desenvolvimento de dois ramos das ciências biológicas, a  paleoantropologia e a genética evolutiva, na primeira metade do século  XX, e a ameaça representada pelas idéias nazistas e eugenistas durante a  Segunda Guerra Mundial foram determinantes para destronar  temporariamente aquela concepção no âmbito das ciências biológicas. E  após a derrota do nazismo, mesmo biólogos conservadores, como Edward O.  Wilson, um dos fundadores da sociobiologia, diziam que a noção de raça  ou subespécie era tão arbitrária que deveria ser abandonada.  
Não auxiliava na classificação de plantas e animais e nem no entendimento dos fenômenos evolutivos. Ao contrário, confundia-os.  
A teoria neodarwinista, proposta na virada dos anos de 1940 por Ernst  Mayr, Theodozius Dobzanky e Julian Huxley, reuniu a teoria da evolução  proposta por Darwin com os achados de Mendel e as novi-dades da nascente  genética das populações, mas ainda mantinha em suas bases o dogma da  Criação. Aceitava a evolução das espécies como um processo progressivo  em cuja base estão as espécies inferiores que gradativamente progridem  até chegar ao ápice dominado pela figura humana, como se a evolução  seguisse um plano previamente traçado. O neodarwinismo propõe que a  evolução consiste no surgimento de novas variantes de genes em grupos  isolados de uma espécie; essas variantes surgem ao acaso provocadas por  mutações e não ocorrem de maneira homogênea em toda a espécie.  Gradualmente, sob a ação da seleção natural, as variantes genéticas que  conferem vantagens adaptativas aos indivíduos do grupo são incorporadas  ao seu patrimônio genético. O isolamento e o acúmulo progressivo de  mutações em seu patrimônio genético torna-o, ao longo do tempo,  incompatível com a espécie original – definindo uma nova espécie. As  raças ou subespécies, por sua vez, seriam os estágios intermediários  desse processo.  
Esta teoria não rompeu com as idéias racistas que, ao contrário, a  evocavam para afirmar que as raças negra e amarela seriam estágios  anteriores e inferiores da raça branca e inspirou correntes  reacionárias, como a sociobiologia e o ultradarwinismo.  
Mas o neodarwinismo expôs também a fragilidade do conceito de raça,  subespécie ou variedade ao demonstrar como sua significância depende do  momento do processo evolutivo de uma certa espécie. Como saber se as  variações observáveis dentro de uma espécie dariam vantagens evolutivas  aos seus portadores a ponto de diferenciá-los numa raça? Em que momento  um conjunto de variações poderia conferir status de raça a uma  população? Inspirou, também vários estudos que tentaram quantificar a  variação genética entre populações de uma mesma espécie, inclusive na  espécie humana. Esses estudos mostraram que a variação genética entre  indivíduos de uma mesma população humana é menor do que a variação entre  indivíduos de “raças” diferentes. Outros estudos demonstraram que os  traços que orientam as noções de raças – a cor da pele, o formato do  nariz e dos lábios e o tipo de cabelo – não são típicos de cada “raça”.  Existem, por exemplo, pessoas de pele clara e pessoas de pele escura  portadoras de cabelos crespos, ondulados e lisos; de nariz achatado e de  nariz aquilino; de lábios finos ou carnudos. As variações genéticas  para cada uma dessas características estão espalhadas em toda a  população humana.
Raça, um conceito ideológico, e não biológico 
A luta contra as idéias racistas foi intensa. Apesar dos avanços  posteriores à Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a existência de  raças recrudesceu na década de 1970, quando foram publicados livros como  O Macaco Nu, de Desmond Morris, Gene Egoísta de Richard Dawkins e  Sociobiologia de Edward O. Wilson. As idéias racistas e deterministas  dessas obras, fartamente divulgadas pela imprensa da época, foram  atacadas por cientistas progressistas, de inspiração marxista, como  Richard Lewontin, Steven Rose, Leon Kamin, Marcel Blanc, Stephen J.  Gould, entre outros, que promoveram uma verdadeira campanha de  divulgação de experimentos e pesquisas científicas e demonstraram como  as idéias apresentadas por aqueles autores não tinham fundamentos  científicos e eram, apenas, conclusões de ordem moral e ideológica.  
Nessa época os livros do paleontólogo Stephen J. Gould começaram a  chegar às livrarias mostrando que a teoria neodarwinista não era a única  explicação para a origem de espécies novas. Uma das idéias combatidas  por Gould é a de que as raças ou subespécies são estágios transitórios  do processo de especiação. Ele é veemente no combate à idéia de que a  evolução é um processo de “melhoramento” das espécies e de que há uma  hierarquia entre elas. Ao contrário, ele defende que a seleção natural é  um fator menor na origem das espécies e considera que o acaso é o  principal motor da evolução. O acaso representado por catástrofes  naturais, por alterações gradativas no ambiente, por mutações genéticas  ou alterações mais profundas no material genético são responsáveis pelo  desaparecimento da maior parte das espécies e pelo surgimento de novas.  
Algumas idéias de Gould (muitas delas inspiradas em colegas que no  início do século foram solapados pela força do neodarwinismo, como  Richard Goldschmidt), foram reconhecidas e incorporadas por cientistas  como Ernst Mayr, fundador do neodarwinismo.  
Na segunda metade do século XX os achados de fósseis de ancestrais  humanos acrescentaram novos argumentos contra a existência de raças ao  mostrarem que a espécie humana é muito nova na face da Terra – surgiu há  apenas cerca de 160 mil anos, tempo insuficiente para que houvesse se  diferenciado em raças. Além disso, mostraram que o intercruzamento, ao  contrário do isolamento, é uma característica da espécie  impossibilitando a ocorrência do processo de especiação neodarwinista.  
Atualmente, portanto, é consenso de que não existem raças biologicamente  definidas entre os homens. Mesmo tendo destruído o conceito biológico  de raça humana, não será a ciência que destruirá o racismo, cujas  origens não são científicas e nem fazem parte da natureza humana. O  racismo também não é um mero problema de atitude, um preconceito  residual do tempo da escravidão, como a visão liberal tradicional  deseja. As origens do racismo são ideológicas e suas bases se mantêm na  medida em que o racismo reforça o sistema capitalista. As conclusões da  paleoantropologia e da genética de populações, no entanto, devem ser  incorporadas à luta contra o racismo com a mesma veemência que as  conclusões pseudocientíficas o foram a seu favor em tempos de triste  memória. 
Verônica Bercht é bióloga e jornalista.
Texto da Revista Princípios ed. 79