sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

D. Pedro II, quem explica?



Monarca republicano, imperador cidadão, abolicionista num país escravocrata, intelectual num mar de analfabetos. Interprete-o a gosto!

Lorenzo Aldé
1/11/2012 


O ex-imperador morto em Paris, em 1891: honras de chefe de Estado e um travesseiro com terra do Brasil. (Fundação Biblioteca Nacional)

Legítimo descendente das mais nobres dinastias monárquicas europeias, D. Pedro II acreditava mesmo era no regime republicano. Imperador desde os cinco anos de idade, era fã da democracia. Abolicionista declarado, viu seu país ser o último a acabar com a escravidão nas Américas. À frente de uma nação com 80% de analfabetos, seria para sempre lembrado por sua dedicação à Educação. Conhecido como “rei filósofo”, não nos legou qualquer produção intelectual ou artística própria. Contido e comedido, avesso aos “tristes negócios da política”, logrou garantir a estabilidade política e a unidade nacional diante de pressões diversas, sobressaindo-se pela atuação segura na maior guerra que o Brasil já enfrentou.
Como é possível que uma das figuras mais marcantes e conhecidas de nossa História permaneça associada a tamanhas contradições? Nem os mais eficientes estudos e biografias são suficientes para desfazer essa impressão: D. Pedro II é, sobretudo, um personagem incompreendido. Ou compreendido apenas em parte. Juntar seus pedaços significa esbarrar, sempre, em grandes enigmas.
Para as almas que só se aquietam diante de consensos, pode ser agradável concluir que o imperador foi um governante querido e respeitado de forma quase unânime em seu tempo. Mas sempre há quem conteste o consenso. Em 1925, em meio aos festejos laudatórios em torno do centenário de D. Pedro II, o ainda jovem sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) fez uma conferência pública dedicada a demolir o mito. Em suas palavras, o Império teria sido um “período melancolicamente virtuoso”. Culpa do imperador, responsável por implantar entre nós uma “ditadura da moralidade, com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava”. Não é de estranhar que Freyre – cuja obra enalteceria a miscigenação que forjou no Brasil uma cultura inédita no mundo – se incomodasse com os modos excessivamente europeizados do imperador. Figura impávida e inatacável, afeita mais às letras e às ciências do que ao contato social, mais às leis e às normas do que às relações afetivas e parentais, D. Pedro II contrariava a brasilidade festiva e manemolente enaltecida por Freyre. Seus valores puritanos seriam alienígenas à cultura nacional, como “um pastor protestante a oficiar em catedral católica”.
Difícil não se deixar seduzir pelo inspirado diagnóstico do pensador pernambucano. Mas tal “desajustamento ao meio e ao momento”, se existiu, não deve ter sido de todo mau. Ajustado ao meio e ao momento pelo qual passava o mundo, D. Pedro ajudou a incutir no Brasil princípios até então praticamente inéditos por aqui. Princípios considerados, na época, “civilizatórios”, que hoje qualificamos como “republicanos”: respeito ao interesse público, despersonalização da política, meritocracia. Nem por isso deixamos de ser mestiços, festivos ou adeptos do improviso. A excepcionalidade de D. Pedro II teria servido apenas para dar uma contrabalançada na receita.
Além do mais, caso fosse mesmo um desajustado, não teria reinado por quase 50 anos. É o que sustenta Roderick J. Barman, autor do livro Imperador cidadão, em entrevista por e-mail. Ele lembra que D. Pedro não estava sozinho: “O grupo que liderava o Brasil durante a primeira metade do século XIX havia sido, em sua maior parte, educado na Europa, e tomava França e Inglaterra como modelos do que o Brasil deveria ser (aliás, todos os ‘homens de casaca’, educados, compartilhavam essa visão). Neste sentido, Pedro II era bem brasileiro”, defende.
Mas o historiador canadense, com mais de quatro décadas dedicadas ao estudo do Brasil Império, também tem sua tese controversa. Apresenta-a em forma de pistas: é o mais popular político da nossa História; apresenta-se como a encarnação das aspirações do país; é aberto, amigável e gentil, apto a comunicar-se com gente simples e identificar suas necessidades; tranquilizadoramente gordinho, não representa ameaça a ninguém, e ao mesmo tempo é digno e imponente, um legítimo chefe de Estado; transformou aimagem do Brasil como um Estado-nação, tornando-o conhecido e respeitado em todo o mundo.Quem seria este personagem? Para Barman, são dois em um: D. Pedro II e Luiz Inácio Lula da Silva.
Fique o leitor à vontade para refletir sobre a inusitada associação. Para os acadêmicos, é fácil descartá-la sob o argumento do anacronismo. Mais proveitoso, no entanto, pode ser considerá-la uma licença poética. A liberdade interpretativa é um direito inalienável de quem se propõe a ler a história, e tem o potencial de abrir novos caminhos.
Com respeito ao nosso protagonista, uma definição soa inadequada. “Amigável” e “gentil”, até pode ser. Mas “aberto”? Biógrafos descrevem D. Pedro como tímido, inseguro, taciturno. Quanto a “comunicar-se com gente simples”, o próprio Barman, em seu livro, cita a fala de uma pessoa próxima ao imperador, segundo a qual ele tinha “catinga de rei”, considerando-se feito “de outra fibra e superior a toda a gente”.
Mais uma vez, há controvérsias. O nobre imperador era de fato receptivo e surpreendentemente despido de preconceitos comuns em seu tempo. Caso emblemático foi sua relação com D. Obá, ou “príncipe Obá II d’ África”, como se autoproclamava Cândido Fonseca Galvão, um filho de escravos e neto de imperador africano. Depois que lutou com bravura na Guerra do Paraguai, promovido a oficial honorário do Exército, o baiano tornou-se personalidade pública no Rio de Janeiro na década de 1870. Liderava campanhas contra os maus-tratos no Exército, pelo fim do uso da chibata, pela igualdade racial e pela abolição da escravatura. “Era adorado pelos negros libertos e malvisto pela elite, que o desprezava. Os jornais o ridicularizavam, retratado como um louco”, descreve Eduardo Silva, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, em conversa com a RHBN. Entre essas duas visões inconciliáveis – a dos ex-escravos dos cortiços e a dos escravocratas da elite –, de que lado ficou o imperador? Com os primeiros. Mesmo criticado, D. Pedro II recebia D. Obá em palácio, reconhecendo seus serviços no Paraguai e tratando-o com todo respeito. “Meu coração é cheio de PII, PII”, dizia o príncipe africano, em gratidão ao bom tratamento recebido do monarca. Eduardo Silva lembra que recentemente foi descoberta a única fotografia conhecida de D. Obá, entre os bens da princesa Isabel. “Só o fato de terem guardado mostra certo respeito que a família imperial nutria por ele”, comenta.
Monarquia e abolicionismo costumam ser vistos juntos. Isabel entrou para a História como “a Redentora”. Proclamada a República, o governo reprimiu fortemente os espontâneos festejos populares em torno do 13 de Maio, por louvarem a monarquia. Ao mesmo tempo, uma milícia de guardas negros combatia o regime e ansiava pela volta da coroa.
Tudo certo, mais ou menos. Uma pergunta ainda incomoda: se era tão simpática ao regime, por que a abolição não veio antes? Quanto a D. Pedro, do alto de seu poder imperial, será que ele fez menos do que poderia?  
Na biografia D. Pedro II: Ser ou não ser, José Murilo de Carvalho defende que ele “não escondeu sua posição contrária à escravidão”, embora “nem sempre jogasse todo o seu peso político do lado dos abolicionistas”. Roderick J. Barman pondera que “a escravidão estava entranhada e era vista como indispensável em todos os níveis da sociedade”, mas reconhece que “a falta que se pode cobrar [de D. Pedro II] é, depois do seu retorno ao Brasil em 1877, não ter agido para assegurar que o processo de emancipação fosse ao mesmo tempo reforçado e acelerado”. Para Eduardo Silva, “claramente ele não se sentia confortável com essa situação. Mas não dependia dele, tinha o Senado e Câmara. A princesa assinou a Lei Áurea porque foi aprovada pela Câmara, não poderia fazer por decreto”.
É, portanto, um tema propício para nos lembrar que não é possível separar o governante de seu tempo, nem o Estado da sociedade que representa. São os dois lados da moeda: se não se pode culpar o indivíduo pelos atrasos que persistiram na sociedade brasileira do século XIX, também não são mérito exclusivo do imperador as conquistas da época.
Quanto a “não jogar todo o seu peso político” – esta, sim, uma variável individual –, a historiadora Alessandra Fraguas afirma que, de fato, D. Pedro II costumava abrir mão de exercer seu Poder Moderador. A análise de todas as minutas das reuniões do imperador com o Conselho de Estado demonstra que ele assumia “mais um caráter mediador do que fazia prevalecer a sua vontade”. Alessandra integrou a equipe do Museu Imperial de Petrópolis que durante dois anos debruçou-se sobre cerca de 30.000 documentos para organizar um dossiê sobre as viagens de D. Pedro e registrá-lo no programa Memória do Mundo, da Unesco.
A pesquisadora cita um documento para exemplificar o interesse do imperador pela emancipação dos escravos. Em rascunhos que se estendem por algumas páginas – palavras riscadas e reescritas, registrando seu raciocínio “em tempo real” –, ele faz contas sobre as possíveis idades dos escravos a serem libertados e as respectivas indenizações a serem pagas. “Como emancipá-los gradualmente pela lei?”, pergunta-se o monarca. “Os de 30 [anos] são os que prestarão mais serviço, e os de 60 já o terão prestado 30 anos, e merecem sua emancipação por lei, sem indenização a quem já tirou dele o maior lucro”, calcula, para em seguida concluir que, por essa proposta, o último escravo seria libertado “em 1931”. “Seria muito tarde”, reconhece, “embora deva-se atender aqui o termo médio de vida do escravo que é de menos de 39 anos e assim o número dos escravos não será grande nessa época”. É o D. Pedro II ponderado e conciliador, a favor de avanços “civilizatórios”, mas zeloso para que fossem graduais, sem rupturas legais.
Naquilo em que os valores do indivíduo não dependiam de negociação política, ele era exemplar. Recusava aumentos salariais, só viajava bancando-se do próprio bolso, aceitava os piores ataques da imprensa numa impavidez olímpica (e jamais repetida em toda a História da República), aceitava democraticamente a existência de um Partido Republicano em plena monarquia.
Alessandra Fraguas vem propondo novas leituras sobre a trajetória do imperador, entre elas uma análise de sua relação com as ciências. Sabe-se que a sólida formação intelectual de D. Pedro II não resultou em inteligência destacada. Era mais enciclopédico do que livre-pensador. “O intelecto de D. Pedro II não era de modo algum extraordinário (...) Sua suposta familiaridade com a maioria dos campos de conhecimento parecia pretensiosa e pouco convincente”, escreve Barman em Imperador cidadão.
A definição de “rei filósofo” merece ser relativizada: “filósofo”, na época, era quem se dedicava a estudos e pesquisas humanísticos. Hoje o imperador não seria um “filósofo” pela simples razão de não filosofar por conta própria. Se é possível filiá-lo a algum dos campos de conhecimento que vicejavam na época, a pesquisadora qualifica D. Pedro como nosso... imperador-etnógrafo. Nas viagens que fazia pelo Brasil e ao exterior, tinha gosto pela observação antropológica, desenhando e descrevendo os cenários e os tipos humanos que encontrava pelo caminho, registrando vocabulários, traduzindo termos.
Mais do que a consagrada “defesa da pátria”, será que estamos diante de uma radiografia mais profunda da alma do imperador republicano? Sua maior motivação seria, na verdade, desbravar o mundo?
Em um aspecto biográfico, essa tese ganha reforço: o abandono precoce foi crucial para o desenvolvimento de sua personalidade. “Órfão de mãe logo depois de completar um ano de idade, de pai aos nove, virou órfão da nação”, escreve José Murilo de Carvalho. “Seus principais conselheiros nunca foram seres humanos, mas sim a página impressa, sobretudo as monografias e as resenhas em francês, que para ele ilustravam a ‘civilização’ vislumbrada para o Brasil”, registra o livro de Barman.
Juntando as pontas, é admirável encontrar, em um trecho de Joaquim Nabuco (1849-1910), a seguinte consideração sobre os indivíduos desprovidos de família: “Em nossa política e em nossa sociedade (...) são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”. O autor, contemporâneo de D. Pedro II, não se refere ao imperador, mas à vida de seu próprio pai, o estadista Nabuco de Araújo (1813-1878). Duplamente admirável porque esse trecho é citado por Sérgio Buarque de Holanda, na obra-prima Raízes do Brasil (1936), como introdução ao conceito de “homem cordial”. Assim justifica o sociólogo: “Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo”. Esse processo sintetizaria a necessidade do Brasil de superar suas características coloniais (personalistas e patriarcais) e desenvolver conceitos mais “elevados” para a formação de um estado igualitário. Ao tratar da orfandade, Sérgio Buarque tampouco se refere ao imperador, embora seja irresistível interpretar a trajetória de D. Pedro II pela ótica do forçado abandono do leito familiar como libertação rumo a valores universais.
Uma de suas frases mais emblemáticas é aquela em que se declara republicano: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador”. Menos comentada, no entanto, é a sequência dessa citação: “Se ao menos meu Pai imperasse ainda, estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo”. Apaixonado pelo Brasil? Sim, sua vida pública o demonstra. Mas não o suficiente para impedir que, podendo, se dedicasse ao que realmente lhe interessava: o mundo.
Eis mais uma leitura possível do nosso multifacetado personagem. Quem não gostou, que conte outra.

Saiba Mais - Bibliografia

BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão. São Paulo: Unesp, 2010.
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II: Ser ou não ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRAGUAS, Alessandra e MARTINS, Thais Cardoso. O habitus e o hábito de D. Pedro II: novos olhares sobre os diários do imperador. Em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312459780_ARQUIVO_ArtigoAnpuh.pdf.
FREYRE, Gilberto. Dom Pedro II, Imperador cinzento de uma terra de sol tropical.Em: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/dom_pedro2.htm.


3 comentários:

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    1. NÃO SEI SE TENHO COMO UM INVASOU!...OU UM REPARADOR DOS SEUS ERROS!....DE UMA COISA EU TENHO CERTEZA!...."A FAMILIA" GOSTAVA DE INVADIR TERRAS E ESCRAVISAR, OS NATIVOS, ISSO É TÃO REAL COMO SUA COROA.

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  2. Prezado Tony,

    Concordo contigo! A Família Real não foi tão boa assim como aparece nos livros de História. Não podemos esquecer que ela representava o Poder da época.

    Abraços,

    José Lima Dias Júnior

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