Monarca republicano, imperador
cidadão, abolicionista num país escravocrata, intelectual num mar de
analfabetos. Interprete-o a gosto!
Lorenzo
Aldé
1/11/2012
O ex-imperador morto em Paris, em 1891: honras de
chefe de Estado e um travesseiro com terra do Brasil. (Fundação Biblioteca
Nacional)
Legítimo descendente das mais
nobres dinastias monárquicas europeias, D. Pedro II acreditava mesmo era no
regime republicano. Imperador desde os cinco anos de idade, era fã da democracia.
Abolicionista declarado, viu seu país ser o último a acabar com a escravidão
nas Américas. À frente de uma nação com 80% de analfabetos, seria para sempre
lembrado por sua dedicação à Educação. Conhecido como “rei filósofo”, não nos
legou qualquer produção intelectual ou artística própria. Contido e comedido,
avesso aos “tristes negócios da política”, logrou garantir a estabilidade
política e a unidade nacional diante de pressões diversas, sobressaindo-se pela
atuação segura na maior guerra que o Brasil já enfrentou.
Como é possível que uma das
figuras mais marcantes e conhecidas de nossa História permaneça associada a
tamanhas contradições? Nem os mais eficientes estudos e biografias são
suficientes para desfazer essa impressão: D. Pedro II é, sobretudo, um
personagem incompreendido. Ou compreendido apenas em parte. Juntar seus pedaços
significa esbarrar, sempre, em grandes enigmas.
Para as almas que só se aquietam
diante de consensos, pode ser agradável concluir que o imperador foi um
governante querido e respeitado de forma quase unânime em seu tempo. Mas sempre
há quem conteste o consenso. Em 1925, em meio aos festejos laudatórios em torno
do centenário de D. Pedro II, o ainda jovem sociólogo Gilberto Freyre
(1900-1987) fez uma conferência pública dedicada a demolir o mito. Em suas
palavras, o Império teria sido um “período melancolicamente virtuoso”. Culpa do
imperador, responsável por implantar entre nós uma “ditadura da moralidade, com
suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o
senador que bebia, o político que jogava”. Não é de estranhar que Freyre – cuja
obra enalteceria a miscigenação que forjou no Brasil uma cultura inédita no
mundo – se incomodasse com os modos excessivamente europeizados do imperador.
Figura impávida e inatacável, afeita mais às letras e às ciências do que ao
contato social, mais às leis e às normas do que às relações afetivas e
parentais, D. Pedro II contrariava a brasilidade festiva e manemolente
enaltecida por Freyre. Seus valores puritanos seriam alienígenas à cultura
nacional, como “um pastor protestante a oficiar em catedral católica”.
Difícil não se deixar seduzir
pelo inspirado diagnóstico do pensador pernambucano. Mas tal “desajustamento ao
meio e ao momento”, se existiu, não deve ter sido de todo mau. Ajustado ao meio
e ao momento pelo qual passava o mundo, D. Pedro ajudou a incutir no Brasil
princípios até então praticamente inéditos por aqui. Princípios considerados,
na época, “civilizatórios”, que hoje qualificamos como “republicanos”: respeito
ao interesse público, despersonalização da política, meritocracia. Nem por isso
deixamos de ser mestiços, festivos ou adeptos do improviso. A excepcionalidade
de D. Pedro II teria servido apenas para dar uma contrabalançada na receita.
Além do mais, caso fosse mesmo um
desajustado, não teria reinado por quase 50 anos. É o que sustenta Roderick J.
Barman, autor do livro Imperador cidadão, em entrevista por e-mail.
Ele lembra que D. Pedro não estava sozinho: “O grupo que liderava o Brasil
durante a primeira metade do século XIX havia sido, em sua maior parte, educado
na Europa, e tomava França e Inglaterra como modelos do que o Brasil deveria
ser (aliás, todos os ‘homens de casaca’, educados, compartilhavam essa visão).
Neste sentido, Pedro II era bem brasileiro”, defende.
Mas o historiador canadense, com
mais de quatro décadas dedicadas ao estudo do Brasil Império, também tem sua
tese controversa. Apresenta-a em forma de pistas: é o mais popular político da
nossa História; apresenta-se como a encarnação das aspirações do país; é
aberto, amigável e gentil, apto a comunicar-se com gente simples e identificar
suas necessidades; tranquilizadoramente gordinho, não representa ameaça a
ninguém, e ao mesmo tempo é digno e imponente, um legítimo chefe de Estado;
transformou aimagem do Brasil como um Estado-nação, tornando-o conhecido e
respeitado em todo o mundo.Quem seria este personagem? Para Barman, são dois em
um: D. Pedro II e Luiz Inácio Lula da Silva.
Fique o leitor à vontade para
refletir sobre a inusitada associação. Para os acadêmicos, é fácil descartá-la
sob o argumento do anacronismo. Mais proveitoso, no entanto, pode ser
considerá-la uma licença poética. A liberdade interpretativa é um direito
inalienável de quem se propõe a ler a história, e tem o potencial de abrir
novos caminhos.
Com respeito ao nosso
protagonista, uma definição soa inadequada. “Amigável” e “gentil”, até pode
ser. Mas “aberto”? Biógrafos descrevem D. Pedro como tímido, inseguro,
taciturno. Quanto a “comunicar-se com gente simples”, o próprio Barman, em seu
livro, cita a fala de uma pessoa próxima ao imperador, segundo a qual ele tinha
“catinga de rei”, considerando-se feito “de outra fibra e superior a toda a
gente”.
Mais uma vez, há controvérsias. O
nobre imperador era de fato receptivo e surpreendentemente despido de
preconceitos comuns em seu tempo. Caso emblemático foi sua relação com D. Obá,
ou “príncipe Obá II d’ África”, como se autoproclamava Cândido Fonseca Galvão,
um filho de escravos e neto de imperador africano. Depois que lutou com bravura
na Guerra do Paraguai, promovido a oficial honorário do Exército, o baiano
tornou-se personalidade pública no Rio de Janeiro na década de 1870. Liderava
campanhas contra os maus-tratos no Exército, pelo fim do uso da chibata, pela
igualdade racial e pela abolição da escravatura. “Era adorado pelos negros
libertos e malvisto pela elite, que o desprezava. Os jornais o ridicularizavam,
retratado como um louco”, descreve Eduardo Silva, pesquisador da Fundação Casa
de Rui Barbosa, em conversa com a RHBN. Entre essas duas visões inconciliáveis
– a dos ex-escravos dos cortiços e a dos escravocratas da elite –, de que lado
ficou o imperador? Com os primeiros. Mesmo criticado, D. Pedro II recebia D.
Obá em palácio, reconhecendo seus serviços no Paraguai e tratando-o com todo
respeito. “Meu coração é cheio de PII, PII”, dizia o príncipe africano, em
gratidão ao bom tratamento recebido do monarca. Eduardo Silva lembra que
recentemente foi descoberta a única fotografia conhecida de D. Obá, entre os bens
da princesa Isabel. “Só o fato de terem guardado mostra certo respeito que a
família imperial nutria por ele”, comenta.
Monarquia e abolicionismo
costumam ser vistos juntos. Isabel entrou para a História como “a Redentora”.
Proclamada a República, o governo reprimiu fortemente os espontâneos festejos
populares em torno do 13 de Maio, por louvarem a monarquia. Ao mesmo tempo, uma
milícia de guardas negros combatia o regime e ansiava pela volta da coroa.
Tudo certo, mais ou menos. Uma
pergunta ainda incomoda: se era tão simpática ao regime, por que a abolição não
veio antes? Quanto a D. Pedro, do alto de seu poder imperial, será que ele fez
menos do que poderia?
Na biografia D. Pedro II: Ser
ou não ser, José Murilo de Carvalho defende que ele “não escondeu sua
posição contrária à escravidão”, embora “nem sempre jogasse todo o seu peso
político do lado dos abolicionistas”. Roderick J. Barman pondera que “a
escravidão estava entranhada e era vista como indispensável em todos os níveis
da sociedade”, mas reconhece que “a falta que se pode cobrar [de D. Pedro II]
é, depois do seu retorno ao Brasil em 1877, não ter agido para assegurar que o
processo de emancipação fosse ao mesmo tempo reforçado e acelerado”. Para
Eduardo Silva, “claramente ele não se sentia confortável com essa situação. Mas
não dependia dele, tinha o Senado e Câmara. A princesa assinou a Lei Áurea
porque foi aprovada pela Câmara, não poderia fazer por decreto”.
É, portanto, um tema propício
para nos lembrar que não é possível separar o governante de seu tempo, nem o
Estado da sociedade que representa. São os dois lados da moeda: se não se pode
culpar o indivíduo pelos atrasos que persistiram na sociedade brasileira do
século XIX, também não são mérito exclusivo do imperador as conquistas da época.
Quanto a “não jogar todo o seu
peso político” – esta, sim, uma variável individual –, a historiadora
Alessandra Fraguas afirma que, de fato, D. Pedro II costumava abrir mão de
exercer seu Poder Moderador. A análise de todas as minutas das reuniões do imperador
com o Conselho de Estado demonstra que ele assumia “mais um caráter mediador do
que fazia prevalecer a sua vontade”. Alessandra integrou a equipe do Museu
Imperial de Petrópolis que durante dois anos debruçou-se sobre cerca de 30.000
documentos para organizar um dossiê sobre as viagens de D. Pedro e registrá-lo
no programa Memória do Mundo, da Unesco.
A pesquisadora cita um documento
para exemplificar o interesse do imperador pela emancipação dos escravos. Em
rascunhos que se estendem por algumas páginas – palavras riscadas e reescritas,
registrando seu raciocínio “em tempo real” –, ele faz contas sobre as possíveis
idades dos escravos a serem libertados e as respectivas indenizações a serem
pagas. “Como emancipá-los gradualmente pela lei?”, pergunta-se o monarca. “Os
de 30 [anos] são os que prestarão mais serviço, e os de 60 já o terão prestado
30 anos, e merecem sua emancipação por lei, sem indenização a quem já tirou
dele o maior lucro”, calcula, para em seguida concluir que, por essa proposta,
o último escravo seria libertado “em 1931”. “Seria muito tarde”, reconhece,
“embora deva-se atender aqui o termo médio de vida do escravo que é de menos de
39 anos e assim o número dos escravos não será grande nessa época”. É o D.
Pedro II ponderado e conciliador, a favor de avanços “civilizatórios”, mas
zeloso para que fossem graduais, sem rupturas legais.
Naquilo em que os valores do
indivíduo não dependiam de negociação política, ele era exemplar. Recusava
aumentos salariais, só viajava bancando-se do próprio bolso, aceitava os piores
ataques da imprensa numa impavidez olímpica (e jamais repetida em toda a
História da República), aceitava democraticamente a existência de um Partido
Republicano em plena monarquia.
Alessandra Fraguas vem propondo
novas leituras sobre a trajetória do imperador, entre elas uma análise de sua
relação com as ciências. Sabe-se que a sólida formação intelectual de D. Pedro
II não resultou em inteligência destacada. Era mais enciclopédico do que
livre-pensador. “O intelecto de D. Pedro II não era de modo algum
extraordinário (...) Sua suposta familiaridade com a maioria dos campos de
conhecimento parecia pretensiosa e pouco convincente”, escreve Barman em Imperador
cidadão.
A definição de “rei filósofo”
merece ser relativizada: “filósofo”, na época, era quem se dedicava a estudos e
pesquisas humanísticos. Hoje o imperador não seria um “filósofo” pela simples
razão de não filosofar por conta própria. Se é possível filiá-lo a algum dos
campos de conhecimento que vicejavam na época, a pesquisadora qualifica D.
Pedro como nosso... imperador-etnógrafo. Nas viagens que fazia pelo Brasil e ao
exterior, tinha gosto pela observação antropológica, desenhando e descrevendo
os cenários e os tipos humanos que encontrava pelo caminho, registrando
vocabulários, traduzindo termos.
Mais do que a consagrada “defesa
da pátria”, será que estamos diante de uma radiografia mais profunda da alma do
imperador republicano? Sua maior motivação seria, na verdade, desbravar o
mundo?
Em um aspecto biográfico, essa
tese ganha reforço: o abandono precoce foi crucial para o desenvolvimento de
sua personalidade. “Órfão de mãe logo depois de completar um ano de idade, de
pai aos nove, virou órfão da nação”, escreve José Murilo de Carvalho. “Seus
principais conselheiros nunca foram seres humanos, mas sim a página impressa,
sobretudo as monografias e as resenhas em francês, que para ele ilustravam a
‘civilização’ vislumbrada para o Brasil”, registra o livro de Barman.
Juntando as pontas, é admirável
encontrar, em um trecho de Joaquim Nabuco (1849-1910), a seguinte consideração
sobre os indivíduos desprovidos de família: “Em nossa política e em nossa
sociedade (...) são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e
governam”. O autor, contemporâneo de D. Pedro II, não se refere ao imperador,
mas à vida de seu próprio pai, o estadista Nabuco de Araújo (1813-1878).
Duplamente admirável porque esse trecho é citado por Sérgio Buarque de Holanda,
na obra-prima Raízes do Brasil (1936), como introdução ao conceito de
“homem cordial”. Assim justifica o sociólogo: “Só pela transgressão da ordem
doméstica e familiar é que nasce o estado e que o simples indivíduo se faz
cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as
leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do
intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo”. Esse processo
sintetizaria a necessidade do Brasil de superar suas características coloniais
(personalistas e patriarcais) e desenvolver conceitos mais “elevados” para a
formação de um estado igualitário. Ao tratar da orfandade, Sérgio Buarque
tampouco se refere ao imperador, embora seja irresistível interpretar a
trajetória de D. Pedro II pela ótica do forçado abandono do leito familiar como
libertação rumo a valores universais.
Uma de suas frases mais
emblemáticas é aquela em que se declara republicano: “Nasci para consagrar-me
às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de
presidente da República ou ministro à de imperador”. Menos comentada, no
entanto, é a sequência dessa citação: “Se ao menos meu Pai imperasse ainda,
estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo”.
Apaixonado pelo Brasil? Sim, sua vida pública o demonstra. Mas não o suficiente
para impedir que, podendo, se dedicasse ao que realmente lhe interessava: o
mundo.
Eis mais uma leitura possível do
nosso multifacetado personagem. Quem não gostou, que conte outra.
Saiba Mais - Bibliografia
BARMAN, Roderick J. Imperador
cidadão. São Paulo: Unesp, 2010.
CARVALHO, José Murilo de. D.
Pedro II: Ser ou não ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRAGUAS, Alessandra e MARTINS,
Thais Cardoso. O habitus e o hábito de D. Pedro II: novos olhares sobre os
diários do imperador. Em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312459780_ARQUIVO_ArtigoAnpuh.pdf.
FREYRE, Gilberto. Dom Pedro
II, Imperador cinzento de uma terra de sol tropical.Em: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/dom_pedro2.htm.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/d-pedro-ii-quem-explicahttp://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/d-pedro-ii-quem-explica
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNÃO SEI SE TENHO COMO UM INVASOU!...OU UM REPARADOR DOS SEUS ERROS!....DE UMA COISA EU TENHO CERTEZA!...."A FAMILIA" GOSTAVA DE INVADIR TERRAS E ESCRAVISAR, OS NATIVOS, ISSO É TÃO REAL COMO SUA COROA.
ExcluirPrezado Tony,
ResponderExcluirConcordo contigo! A Família Real não foi tão boa assim como aparece nos livros de História. Não podemos esquecer que ela representava o Poder da época.
Abraços,
José Lima Dias Júnior