segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Silêncio ensurdecedor

Por Leandro Antonio de Alemeida, doutorando em História pela USP e professor da UFRB

09.03.2012 18:05
Como o regime militar instalou mecanismos de censura nos meios artísticos e de comunicação. Foto: Acervo UH/Folhapress


Prezada censura e amigos, é com prazer que pego nesta caneta, a fim de lhe cumprimentar a suas pessoa (sic), que esta ao chegar em suas mãos esteje (sic) com saúde e felicidades.” Assim começa uma carta reproduzida pelo historiador Carlos Fico, datada de 23 de setembro de 1974. Foi escrita por uma mulher doente que, a pedido de 50 mães, remetia um “apelo à censura, em nome de Deus,” para esta “dar uma ordem para as TV, aonde estiver com bandalheiras, falta de moral, falta de respeito, em plenas câmeras de TV, nos programas”. Em períodos de fechamento político, pedidos como esse ecoam fortemente ao legitimar a legislação que restringe a veiculação de conteúdos.
Em todo o período republicano brasileiro a censura foi legalmente exercida. Apesar de a Constituição de 1891 garantir a liberdade de expressão, desde o início do século XX cabia à polícia exercer a censura prévia nos teatros e cinemas. Por outro lado, em 1923 uma lei de imprensa foi promulgada pelo senador Adolfo Gordo e sancionada pelo presidente Arthur Bernardes (1922-1926), que dela se valeu para conter os opositores ao estado de sítio do seu instável governo, marcado por revoltas de militares de baixa patente, como a Coluna Prestes.
Essa lei também previa uma censura moral punitiva aos livros, que foi usada por uma instituição católica denominada Liga da Moralidade para denunciar à Justiça um romance de sucesso, Mademoiselle Cinema, de Benjamin Costallat. Já nas livrarias, o livro foi apreendido pela polícia porque continha cenas de sexo, amores fugazes, adultério e consumo de -cocaína. Mas seu autor foi absolvido porque o juiz comprou a tese “educacional” do prefácio: “A menina, educada sob certos costumes da época, nunca poderá ser mãe e esposa. Ficam-lhe vedadas as mais puras e as melhores alegrias da vida”.
Depois do golpe em 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, a censura foi reorganizada. Inicialmente, algumas leis foram promulgadas com a nova Constituição, em 1934, mas vigoraram por pouco tempo. Após sete anos na Presidência, a tentativa de um golpe comunista organizado por Luiz Carlos Prestes, em 1935, criou o pretexto para fechamento do País através de uma Lei de Segurança Nacional. Em 1937 foi implantado o Estado Novo.
A concentração do poder exigiu do governo autoritário uma maior aproximação com as massas, por meio de propaganda ostensiva, acompanhada da centralização da censura prévia de apresentações, irradiações e impressos, -retirando-a da órbita da polícia.
A dupla tarefa ficou sob a responsabilidade do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em dezembro de 1939 e subordinado diretamente ao presidente. A censura do DIP atuou para depurar os aspectos malandros e boêmios, contrários aos valores de trabalho e nacionalidade promovidos pelo regime, das canções veiculadas pelo rádio, mídia que se tornou popular a partir dos anos 30.
O exemplo mais conhecido foi a alteração da letra de O Bonde São Januário, composta por Wilson Batista e Ataulfo Alves: no lugar de “O bonde São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu que não vou trabalhar”, os censores liberaram “Leva mais um operário/ Sou eu quem vou trabalhar”. Na mesma época, jornais e jornalistas necessitavam de registro cedido pelo governo e tiveram de se submeter à censura prévia, sob pena de sofrer intervenção.
Além disso, edições inteiras de livros foram apreendidas nas livrarias de todo o Brasil, tanto pelo conteúdo considerado comunista, como os livros de Jorge Amado, quanto pela imoralidade, a exemplo do romance de um escritor hoje desconhecido, João de Minas, intitulado A Mulher Carioca aos 22 Anos.
A censura prévia manteve-se após a democratização, em 1945, sendo regulamentada no ano seguinte, para atuar no teatro, cinema e demais apresentações, através do Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP), ligado à Polícia Federal. O regulamento e o órgão serviram de base para a censura nas décadas seguintes, mas foram reestruturados pelos militares após 1968.
O mundo pós-1945 presenciou a polarização em torno de duas superpotências militares, os Estados Unidos e a União Soviética, rivalizando capitalismo e comunismo numa Guerra Fria cujo palco era todo o globo. No Brasil, a perspectiva de justiça social avançava nos anos 1950 e 1960, inspirando a criação de movimentos sociais como as Ligas Camponesas do Nordeste e os movimentos de cultura popular ou o fortalecimento do movimento estudantil e dos sindicatos.
A perspectiva comunista encontrava simpatizantes no Congresso, na burocracia e mesmo no Exército. O próprio presidente João Goulart, que assumiu o governo em 1961, foi considerado comunista pelos mais conservadores por encampar reformas de base que atendiam a essas reivindicações.
Junto ao temor de um levante de esquerda, como o que ocorreu em Cuba a partir de 1959, tais movimentações e propostas levaram militares, no fim de março de 1964, a executar um golpe militar no Brasil, com franco apoio de parte conservadora da população civil e do governo dos Estados Unidos, que deu suporte a golpes semelhantes na América Latina. A partir daí, implantou-se o regime militar e, em 1967, promulgou-se uma nova Constituição, baseada na doutrina da Segurança Nacional. A mais violenta reação às oposições ocorreu entre 1968 e 1974, com a suspensão de direitos civis e políticos (AI-5), exílio, aumento de prisões, tortura e mortes.
A repressão ficou a cargo de instituições como o Serviço Nacional de Informações (SNI), centrado na espionagem; a polícia política, via Exército, pelo DOI-Codi, e via Polícia Militar, pelo Dops, voltados ao controle da “subversão”; e a Comissão Geral de Investigações (CGI), responsável pelo difícil combate à corrupção.
O braço ideológico do governo militar, diferentemente do DIP nos anos 30, foi fragmentado na Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), que fazia propaganda exaltando o governo; na censura política, entre 1968 e 1978, feita por censores nas redações e contatos das autoridades com os donos dos jornais; e na duradoura censura moral, a cargo da -Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP).
Às vésperas do AI-5, a Lei 5.536, de 1968, deu novas cores à censura teatral e cinematográfica, incorporando a televisiva, além de criar o Conselho Superior de Censura, operacionalizado apenas em 1978. Em 1970, o Decreto 1.077 passou a exigir a verificação prévia do conteúdo moral das publicações nacionais e estrangeiras antes de sua divulgação, temendo a degeneração da família pela pornografia, associada à difusão do comunismo soviético. Por causa volume de obras editadas no País, na prática a interdição operava a partir de denúncias, cujo teor replicava a avaliação dos censores em relação a obras literárias, de cunho político ou não, ou abertamente eróticas, como as publicadas por Cassandra Rios e Adelaide Carraro.
Daí o conteúdo revelador de algumas cartas enviadas à DCDP. Não por acaso, o período de maior incidência das cartas e da atuação da censura moral de filmes, peças teatrais e livros coincide com a abertura do regime, entre 1975 e 1981. A continuidade do discurso que associava a pornografia ao comunismo, no senso comum das classes médias urbanas, contribuiu para legitimar a vida longa da “prezada censura”.
A censura foi abolida pela Constituição de 1988 e, com ela, a DCDP foi desmantelada. De 1990 em diante, a política brasileira se democratizou e o comunismo deixou de representar uma ameaça real ao capitalismo triunfante.
Para arrepio dos moralistas à moda antiga, a partir dai corpos quase nus conformados a um rígido padrão de beleza, aludindo ao ato sexual, são veiculados cada vez mais abertamente nas mídias de massa, com o objetivo de vender mercadorias ou cativar atenção do público. Para desgosto dos mais libertários, o fim da censura não significou necessariamente uma liberação da representação dos corpos, mas sua prisão nas malhas anônimas e difusas de outra interdição. 

Fonte: Carta Capital 
 http://www.cartacapital.com.br/carta-na-escola/silencio-ensurdecedor/

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Raridade!

Fóssil de camarão de 100 milhões de anos é achado no Brasil

Atualizado: 17/01/2013 17:13 | Por Lauriberto Braga, estadao.com.br
FORTALEZA - Pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (Urca) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fóssil de camarão de 100 milhões de anos é achado no Brasil
"Fóssil foi encontrado na cidade de Missão Velha".

FORTALEZA - Pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (Urca) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apresentaram nesta quinta-feira o único fóssil de camarão achado no Brasil. A estimativa dos pesquisadores é que o fóssil tenha mais de 100 milhões de anos. Encontrado em maio do ano passado, no distrito de Romualdo, na cidade de Missão Velha, no Cariri cearense, os pesquisadores levaram oito meses de estudos para comprovar que o fóssil era de um camarão pré-histórico.
O fóssil de camarão trata-se da mais recente descoberta paleontológica do Brasil. Na apresentação, os pesquisadores destacaram que o achado é único exemplar no mundo, encontrado na Bacia Sedimentar do Araripe, entre o Ceará e Pernambuco, e que evidencia que o sertão nordestino na antiguidade era mar.
"Esse é um momento de grande relevância para a região, que se evidencia mundialmente diante da importância e variedade fossilífera da Bacia Sedimentar do Araripe", disse o pesquisador paleontólogo Antônio Álamo Feitosa Saraiva. Álamo Saraiva, que é pesquisador da Urca e diretor científico do Geo Park Araripe, revelou que a peça vai ficar exposta do Geo Park, que fica na cidade de Crato, a 550 quilômetros de Fortaleza. A exposição é para conhecimento da comunidade acadêmica e da sociedade em geral.
O fóssil será registrado na revista Zootaxa, uma publicação neozelandesa especializada em trabalhos que provem a existência de espécies inéditas no mundo.
Com a descoberta os pesquisadores informam que há assim evidências que o semi-árido nordestino já foi banhado pelo mar provavelmente na Era Cretácea (entre 140 milhões e 65 milhões de anos). Os estudos da Urca e da UFRJ indicam ainda que a região do Araripe pode ter tido lagoas com alto nível de salinidade na Pré-História.
"Essa descoberta inédita do fóssil do camarão prova que na Formação Romualdo, em Missão Velha, havia água com algum nível de salinidade. Ali era uma região isolada do mar, que deveria invadi-la esporadicamente", especula Álamo Saraiva.
Durante a solenidade de apresentação foi prestada uma homenagem ao cientista, professor e pesquisador da UFRJ, Alexander Kellner, que participou da equipe de escavação que encontrou o fóssil raro de camarão.

Fonte:  http://estadao.br.msn.com/ciencia/f%C3%B3ssil-de-camar%C3%A3o-de-100-milh%C3%B5es-de-anos-%C3%A9-achado-no-brasil

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

D. Pedro II, quem explica?



Monarca republicano, imperador cidadão, abolicionista num país escravocrata, intelectual num mar de analfabetos. Interprete-o a gosto!

Lorenzo Aldé
1/11/2012 


O ex-imperador morto em Paris, em 1891: honras de chefe de Estado e um travesseiro com terra do Brasil. (Fundação Biblioteca Nacional)

Legítimo descendente das mais nobres dinastias monárquicas europeias, D. Pedro II acreditava mesmo era no regime republicano. Imperador desde os cinco anos de idade, era fã da democracia. Abolicionista declarado, viu seu país ser o último a acabar com a escravidão nas Américas. À frente de uma nação com 80% de analfabetos, seria para sempre lembrado por sua dedicação à Educação. Conhecido como “rei filósofo”, não nos legou qualquer produção intelectual ou artística própria. Contido e comedido, avesso aos “tristes negócios da política”, logrou garantir a estabilidade política e a unidade nacional diante de pressões diversas, sobressaindo-se pela atuação segura na maior guerra que o Brasil já enfrentou.
Como é possível que uma das figuras mais marcantes e conhecidas de nossa História permaneça associada a tamanhas contradições? Nem os mais eficientes estudos e biografias são suficientes para desfazer essa impressão: D. Pedro II é, sobretudo, um personagem incompreendido. Ou compreendido apenas em parte. Juntar seus pedaços significa esbarrar, sempre, em grandes enigmas.
Para as almas que só se aquietam diante de consensos, pode ser agradável concluir que o imperador foi um governante querido e respeitado de forma quase unânime em seu tempo. Mas sempre há quem conteste o consenso. Em 1925, em meio aos festejos laudatórios em torno do centenário de D. Pedro II, o ainda jovem sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) fez uma conferência pública dedicada a demolir o mito. Em suas palavras, o Império teria sido um “período melancolicamente virtuoso”. Culpa do imperador, responsável por implantar entre nós uma “ditadura da moralidade, com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava”. Não é de estranhar que Freyre – cuja obra enalteceria a miscigenação que forjou no Brasil uma cultura inédita no mundo – se incomodasse com os modos excessivamente europeizados do imperador. Figura impávida e inatacável, afeita mais às letras e às ciências do que ao contato social, mais às leis e às normas do que às relações afetivas e parentais, D. Pedro II contrariava a brasilidade festiva e manemolente enaltecida por Freyre. Seus valores puritanos seriam alienígenas à cultura nacional, como “um pastor protestante a oficiar em catedral católica”.
Difícil não se deixar seduzir pelo inspirado diagnóstico do pensador pernambucano. Mas tal “desajustamento ao meio e ao momento”, se existiu, não deve ter sido de todo mau. Ajustado ao meio e ao momento pelo qual passava o mundo, D. Pedro ajudou a incutir no Brasil princípios até então praticamente inéditos por aqui. Princípios considerados, na época, “civilizatórios”, que hoje qualificamos como “republicanos”: respeito ao interesse público, despersonalização da política, meritocracia. Nem por isso deixamos de ser mestiços, festivos ou adeptos do improviso. A excepcionalidade de D. Pedro II teria servido apenas para dar uma contrabalançada na receita.
Além do mais, caso fosse mesmo um desajustado, não teria reinado por quase 50 anos. É o que sustenta Roderick J. Barman, autor do livro Imperador cidadão, em entrevista por e-mail. Ele lembra que D. Pedro não estava sozinho: “O grupo que liderava o Brasil durante a primeira metade do século XIX havia sido, em sua maior parte, educado na Europa, e tomava França e Inglaterra como modelos do que o Brasil deveria ser (aliás, todos os ‘homens de casaca’, educados, compartilhavam essa visão). Neste sentido, Pedro II era bem brasileiro”, defende.
Mas o historiador canadense, com mais de quatro décadas dedicadas ao estudo do Brasil Império, também tem sua tese controversa. Apresenta-a em forma de pistas: é o mais popular político da nossa História; apresenta-se como a encarnação das aspirações do país; é aberto, amigável e gentil, apto a comunicar-se com gente simples e identificar suas necessidades; tranquilizadoramente gordinho, não representa ameaça a ninguém, e ao mesmo tempo é digno e imponente, um legítimo chefe de Estado; transformou aimagem do Brasil como um Estado-nação, tornando-o conhecido e respeitado em todo o mundo.Quem seria este personagem? Para Barman, são dois em um: D. Pedro II e Luiz Inácio Lula da Silva.
Fique o leitor à vontade para refletir sobre a inusitada associação. Para os acadêmicos, é fácil descartá-la sob o argumento do anacronismo. Mais proveitoso, no entanto, pode ser considerá-la uma licença poética. A liberdade interpretativa é um direito inalienável de quem se propõe a ler a história, e tem o potencial de abrir novos caminhos.
Com respeito ao nosso protagonista, uma definição soa inadequada. “Amigável” e “gentil”, até pode ser. Mas “aberto”? Biógrafos descrevem D. Pedro como tímido, inseguro, taciturno. Quanto a “comunicar-se com gente simples”, o próprio Barman, em seu livro, cita a fala de uma pessoa próxima ao imperador, segundo a qual ele tinha “catinga de rei”, considerando-se feito “de outra fibra e superior a toda a gente”.
Mais uma vez, há controvérsias. O nobre imperador era de fato receptivo e surpreendentemente despido de preconceitos comuns em seu tempo. Caso emblemático foi sua relação com D. Obá, ou “príncipe Obá II d’ África”, como se autoproclamava Cândido Fonseca Galvão, um filho de escravos e neto de imperador africano. Depois que lutou com bravura na Guerra do Paraguai, promovido a oficial honorário do Exército, o baiano tornou-se personalidade pública no Rio de Janeiro na década de 1870. Liderava campanhas contra os maus-tratos no Exército, pelo fim do uso da chibata, pela igualdade racial e pela abolição da escravatura. “Era adorado pelos negros libertos e malvisto pela elite, que o desprezava. Os jornais o ridicularizavam, retratado como um louco”, descreve Eduardo Silva, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, em conversa com a RHBN. Entre essas duas visões inconciliáveis – a dos ex-escravos dos cortiços e a dos escravocratas da elite –, de que lado ficou o imperador? Com os primeiros. Mesmo criticado, D. Pedro II recebia D. Obá em palácio, reconhecendo seus serviços no Paraguai e tratando-o com todo respeito. “Meu coração é cheio de PII, PII”, dizia o príncipe africano, em gratidão ao bom tratamento recebido do monarca. Eduardo Silva lembra que recentemente foi descoberta a única fotografia conhecida de D. Obá, entre os bens da princesa Isabel. “Só o fato de terem guardado mostra certo respeito que a família imperial nutria por ele”, comenta.
Monarquia e abolicionismo costumam ser vistos juntos. Isabel entrou para a História como “a Redentora”. Proclamada a República, o governo reprimiu fortemente os espontâneos festejos populares em torno do 13 de Maio, por louvarem a monarquia. Ao mesmo tempo, uma milícia de guardas negros combatia o regime e ansiava pela volta da coroa.
Tudo certo, mais ou menos. Uma pergunta ainda incomoda: se era tão simpática ao regime, por que a abolição não veio antes? Quanto a D. Pedro, do alto de seu poder imperial, será que ele fez menos do que poderia?  
Na biografia D. Pedro II: Ser ou não ser, José Murilo de Carvalho defende que ele “não escondeu sua posição contrária à escravidão”, embora “nem sempre jogasse todo o seu peso político do lado dos abolicionistas”. Roderick J. Barman pondera que “a escravidão estava entranhada e era vista como indispensável em todos os níveis da sociedade”, mas reconhece que “a falta que se pode cobrar [de D. Pedro II] é, depois do seu retorno ao Brasil em 1877, não ter agido para assegurar que o processo de emancipação fosse ao mesmo tempo reforçado e acelerado”. Para Eduardo Silva, “claramente ele não se sentia confortável com essa situação. Mas não dependia dele, tinha o Senado e Câmara. A princesa assinou a Lei Áurea porque foi aprovada pela Câmara, não poderia fazer por decreto”.
É, portanto, um tema propício para nos lembrar que não é possível separar o governante de seu tempo, nem o Estado da sociedade que representa. São os dois lados da moeda: se não se pode culpar o indivíduo pelos atrasos que persistiram na sociedade brasileira do século XIX, também não são mérito exclusivo do imperador as conquistas da época.
Quanto a “não jogar todo o seu peso político” – esta, sim, uma variável individual –, a historiadora Alessandra Fraguas afirma que, de fato, D. Pedro II costumava abrir mão de exercer seu Poder Moderador. A análise de todas as minutas das reuniões do imperador com o Conselho de Estado demonstra que ele assumia “mais um caráter mediador do que fazia prevalecer a sua vontade”. Alessandra integrou a equipe do Museu Imperial de Petrópolis que durante dois anos debruçou-se sobre cerca de 30.000 documentos para organizar um dossiê sobre as viagens de D. Pedro e registrá-lo no programa Memória do Mundo, da Unesco.
A pesquisadora cita um documento para exemplificar o interesse do imperador pela emancipação dos escravos. Em rascunhos que se estendem por algumas páginas – palavras riscadas e reescritas, registrando seu raciocínio “em tempo real” –, ele faz contas sobre as possíveis idades dos escravos a serem libertados e as respectivas indenizações a serem pagas. “Como emancipá-los gradualmente pela lei?”, pergunta-se o monarca. “Os de 30 [anos] são os que prestarão mais serviço, e os de 60 já o terão prestado 30 anos, e merecem sua emancipação por lei, sem indenização a quem já tirou dele o maior lucro”, calcula, para em seguida concluir que, por essa proposta, o último escravo seria libertado “em 1931”. “Seria muito tarde”, reconhece, “embora deva-se atender aqui o termo médio de vida do escravo que é de menos de 39 anos e assim o número dos escravos não será grande nessa época”. É o D. Pedro II ponderado e conciliador, a favor de avanços “civilizatórios”, mas zeloso para que fossem graduais, sem rupturas legais.
Naquilo em que os valores do indivíduo não dependiam de negociação política, ele era exemplar. Recusava aumentos salariais, só viajava bancando-se do próprio bolso, aceitava os piores ataques da imprensa numa impavidez olímpica (e jamais repetida em toda a História da República), aceitava democraticamente a existência de um Partido Republicano em plena monarquia.
Alessandra Fraguas vem propondo novas leituras sobre a trajetória do imperador, entre elas uma análise de sua relação com as ciências. Sabe-se que a sólida formação intelectual de D. Pedro II não resultou em inteligência destacada. Era mais enciclopédico do que livre-pensador. “O intelecto de D. Pedro II não era de modo algum extraordinário (...) Sua suposta familiaridade com a maioria dos campos de conhecimento parecia pretensiosa e pouco convincente”, escreve Barman em Imperador cidadão.
A definição de “rei filósofo” merece ser relativizada: “filósofo”, na época, era quem se dedicava a estudos e pesquisas humanísticos. Hoje o imperador não seria um “filósofo” pela simples razão de não filosofar por conta própria. Se é possível filiá-lo a algum dos campos de conhecimento que vicejavam na época, a pesquisadora qualifica D. Pedro como nosso... imperador-etnógrafo. Nas viagens que fazia pelo Brasil e ao exterior, tinha gosto pela observação antropológica, desenhando e descrevendo os cenários e os tipos humanos que encontrava pelo caminho, registrando vocabulários, traduzindo termos.
Mais do que a consagrada “defesa da pátria”, será que estamos diante de uma radiografia mais profunda da alma do imperador republicano? Sua maior motivação seria, na verdade, desbravar o mundo?
Em um aspecto biográfico, essa tese ganha reforço: o abandono precoce foi crucial para o desenvolvimento de sua personalidade. “Órfão de mãe logo depois de completar um ano de idade, de pai aos nove, virou órfão da nação”, escreve José Murilo de Carvalho. “Seus principais conselheiros nunca foram seres humanos, mas sim a página impressa, sobretudo as monografias e as resenhas em francês, que para ele ilustravam a ‘civilização’ vislumbrada para o Brasil”, registra o livro de Barman.
Juntando as pontas, é admirável encontrar, em um trecho de Joaquim Nabuco (1849-1910), a seguinte consideração sobre os indivíduos desprovidos de família: “Em nossa política e em nossa sociedade (...) são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”. O autor, contemporâneo de D. Pedro II, não se refere ao imperador, mas à vida de seu próprio pai, o estadista Nabuco de Araújo (1813-1878). Duplamente admirável porque esse trecho é citado por Sérgio Buarque de Holanda, na obra-prima Raízes do Brasil (1936), como introdução ao conceito de “homem cordial”. Assim justifica o sociólogo: “Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo”. Esse processo sintetizaria a necessidade do Brasil de superar suas características coloniais (personalistas e patriarcais) e desenvolver conceitos mais “elevados” para a formação de um estado igualitário. Ao tratar da orfandade, Sérgio Buarque tampouco se refere ao imperador, embora seja irresistível interpretar a trajetória de D. Pedro II pela ótica do forçado abandono do leito familiar como libertação rumo a valores universais.
Uma de suas frases mais emblemáticas é aquela em que se declara republicano: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador”. Menos comentada, no entanto, é a sequência dessa citação: “Se ao menos meu Pai imperasse ainda, estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo”. Apaixonado pelo Brasil? Sim, sua vida pública o demonstra. Mas não o suficiente para impedir que, podendo, se dedicasse ao que realmente lhe interessava: o mundo.
Eis mais uma leitura possível do nosso multifacetado personagem. Quem não gostou, que conte outra.

Saiba Mais - Bibliografia

BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão. São Paulo: Unesp, 2010.
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II: Ser ou não ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRAGUAS, Alessandra e MARTINS, Thais Cardoso. O habitus e o hábito de D. Pedro II: novos olhares sobre os diários do imperador. Em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312459780_ARQUIVO_ArtigoAnpuh.pdf.
FREYRE, Gilberto. Dom Pedro II, Imperador cinzento de uma terra de sol tropical.Em: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/dom_pedro2.htm.


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Psicologia de massas do neoliberalismo

 Por Anderson Soares, educador e psicopedagogo.


Em 1932 o psicanalista Wilhelm Reich publicou o livro “Psicologia de Massas do Fascismo” enquanto assistia a ascensão do fascismo e adesão das massas às ideias de Hitler, nesta obra faz sérios questionamentos psicossociais sobre este contexto. Mas, em relação aos dias atuais, poderíamos utilizar ferramentas atualizadas deste autor para entendermos a relação das massas com desígnios do capital e com as estruturas reacionárias que são sustentadas por seus hábitos cotidianos, bem em dias de plena pós-modernidade.

Reich, que naquele contexto já era considerado um discípulo dissidente de Sigmund Freud (ambos tiveram seus livros queimados pela “inquisição” nazista), em sua análise argumenta que, racionalmente seria de se esperar que os trabalhadores miseráveis desenvolvessem uma consciência de sua condição social o que os levaria a se livrarem da miséria social. Mas, conforme este autor, foram justamente as massas miseráveis que contribuíram com obediência e submissão para ascensão do fascismo e demais forças autoritárias.
Em plena contemporaneidade podemos usufruir de inúmeras outras ferramentas para entender o que seria nos dias atuais uma “Psicologia de massas do neoliberalismo”. A própria psicanálise, política do corpo, a análise micropolítica de cada contexto, o papel da subjetividade e um exame cuidadoso das relações de poder e jamais uma visão reducionista e empobrecida de entender a sociedade do capital apenas como a simples divisão entre ricos exploradores algozes e pobres vitimados.

Em plena década de trinta, Reich tentava explicar os mecanismos políticos e os processos psíquicos a que os indivíduos eram submetidos através de instituições que foram muito importantes para ascensão do fascismo, como a família patriarcal, a Igreja, o Exército. Num processo de massificação, supressão das individualidades, enrijecimento das emoções e do fluxo energético (principalmente no que tange a sexualidade), fazendo com que os mesmos estivessem embrutecidos, insatisfeitos e vulneráveis à obediência aos carrascos, charlatões e lideranças fascistas como o Führe, Dulce ou o “Pai dos pobres”.

Numa oportuna contextualização poderemos analisar o mercado e o consumismo como reguladores e controladores das massas, mas sem fascismos, sem exércitos sanguinários e sem déspotas praguejando frases de ordem de ódio aos “inimigos da nação”. Na contemporaneidade está em evidência uma complexa cadeia de poderes interligados, que mais se aproxima do panoptismo problematizado por Michel Foucault, do sistema que vigia e controla sem ser visto ou percebido pelos vigiados, que acabam internalizando os hábitos neuróticos que reproduzem o poder, sem a presença efetiva de algum carrasco.

A sexualidade abordada por Reich na década de trinta, não mais necessita, em dias atuais, de controle e vigilância estreitos e permanentes. Mas, controles que são efetivados e introjetados em forma de saberes e hábitos, em regimes liberais, “democráticos” onde a “liberdade” pode ser exercida. Estéticas padrões imperam e geram estereótipos doentios, assimilados pelas massas teleguiadas, que sacrificam-se para se adaptar, serem bem aceitos e valorizados conforme as referências de beleza e comportamento do contexto. O “sarado”, a “piriguete”, a “magra do cabelo bom que parece uma princesa” a “gostosa” da novela…estes são os padrões atuais a serem “seguidos” (em estética e comportamento) doentiamente pelas massas.

Primordial para o controle à distância em dias atuais: geração e reprodução de seres massificados e a supressão das individualidades, tão evidente em nosso cotidiano. Aquele que ousa preservar sua singularidade em dias atuais, logo é posto na marginalidade interpessoal e adjetivado no mínimo de “alguém muito estranho”, em que hábitos, tradições e preconceitos intoxicam as percepções individuais, que ressumem-se em falas tacanhas repetidas freneticamente pelos serviçais: “O Brasil inteiro é assim”, “as mulheres devem ser assim”, “os ricos são assim”, “os africanos são assim”…e vai.

O passo inicial de Wilhelm Reich (que teve sua teoria deturpada e difamada) nos orientar no entendimento dos aspectos psicossociais das relações de poder na contemporaneidade. A couraça muscular cronificada que impede a autorregulação e o livre fluxo energético, impossibilitando uma vida psíquica sadia, citada pelo mesmo, está em evidência. O hábito, cultura e massificação cristalizam as experiências emocionais negativas, que são vivenciadas no cotidiano como naturais (“todo mundo vive assim”).

As pessoas comuns continuam bastante insatisfeitas com a vida medíocre e esvaziada (repleta de poderosas camuflagens e condutas artificiais) que levam. Sem a capacidade emocional de reagir na defesa de suas singularidades, fomentada pela justificativa da própria infelicidade diária e defesa ferrenha do mesmo sistema que os adoece e escraviza.

Em 1932 Wilhelm Reich alertou: “O medo da liberdade das massas humanas manifesta-se na rigidez biofísica do organismo e na inflexibilidade do caráter”. Mas suas conclusões mal interpretadas fizeram com que fosse expulso não só da Sociedade Internacional de Psicanálise como também do Partido Comunista (com argumento de que as discussões sobre sexualidade afastariam a juventude da luta “revolucionária”). As mesmas nos servem com ferramenta valiosa para refletir as relações de poder na contemporaneidade e ainda como instrumento de libertação das singularidades ofuscadas e cerceadas pela cultura de massas.

Fonte: Carta Potiguar