quarta-feira, 21 de março de 2012

O desenhista do Brasil

Ao negociar com os vizinhos cada palmo das fronteiras, o barão do Rio Branco criou uma cultura de paz impensável no mundo atual.

Rubens Ricupero
1/2/2012 

José Maria da Silva Paranhos Júnior, o "Barão do Rio Branco" (1902-1912). Foi quem deu ao mapa do Brasil o seu desenho atual.

O jornal A Noite resumiu o sentimento geral ao abrir a manchete “A morte de Rio Branco é uma catástrofe nacional” em 10 de fevereiro de 1912. Às 9h10 da manhã, expirara em seu gabinete de trabalho aquele que era considerado “o maior de todos os brasileiros”. O destino do barão foi paradoxal. Monarquista convicto teve papel fundamental na legitimação da República de 1889, que começara sob os piores auspícios: a inflação do Encilhamento, a ditadura militar de Floriano, a tragédia sanguinária de Canudos, a repressão à Revolta da Armada e a Rebelião Federalista no Sul. Foram os êxitos diplomáticos de Rio Branco, ainda antes de se tornar ministro, nas definições de limites com a Argentina e a França-Guiana Francesa, que forneceram ao governo republicano os primeiros sucessos de que precisava desesperadamente.  
Algo parecido ocorreu com sua projeção pessoal. Viveu semiesquecido em postos obscuros na Europa por 26 anos. Só a partir dos 50 anos (morreria com 66) alcançaria o reconhecimento tardio. Desde esse momento, no entanto, acumulou tantas vitórias, em especial como ministro das Relações Exteriores durante quase dez anos (1902-1912) sob quatro presidentes, que ofuscou todos os demais. Nenhum outro diplomata de carreira, em qualquer país, atingiu como ele o status de herói nacional de primeira grandeza, culminando com a reprodução da sua efígie no padrão monetário. Entre 1978 e 1989, a nota de 1.000 cruzeiros, a de maior valor, era chamada pelo povo de “barão”.
O futuro barão nasceu em 20 de abril de 1845 como José Maria da Silva Paranhos Júnior na velha Travessa do Senado, atual Rua 20 de abril, no Centro da cidade, num sobrado que se pode ver ainda hoje no Rio de Janeiro. Fez seus estudos no Liceu D. Pedro II e na Faculdade de Direito de São Paulo, transferindo-se no último ano para Recife, onde se formou. No começo, hesitou sobre o caminho a seguir: foi professor, promotor público e deputado por Mato Grosso em duas legislaturas.
Em 1876, conseguiu ser nomeado para o bem remunerado posto de cônsul geral em Liverpool, na Inglaterra, após vencer tenaz resistência de D. Pedro II e da princesa Isabel, escandalizados com sua reputação de boêmio na tacanha atmosfera provincial da Corte.  Já naquele tempo, mantinha ligação amorosa com a atriz belga Marie Philomène Stevens, com a qual só legalizaria a união muitos anos depois, em 1889.
Em meados de 1893, a morte do advogado brasileiro barão Aguiar de Andrada no arbitramento com a Argentina e sua nomeação para substituí-lo vão tirar do anonimato aquele que era o maior conhecedor do assunto. Como disse o grande jurista americano Basset Moore, ele foi a “maior combinação de estadista e de scholar que havia encontrado”. 
A disputa consistia na identificação no terreno dos rios Peperi Guaçu e Santo Antonio, que deveriam fixar a fronteira argentino-brasileira no que hoje constitui o extremo oeste dos estados do Paraná e de Santa Catarina. A região, denominada de comarca de Palmas pelo Brasil e de Missões pela Argentina, se afigurava indispensável ao perímetro de defesa brasileiro, além de constituir área agrícola de rico potencial, quase exclusivamente povoada por brasileiros.
Graças aos mapas e documentos inéditos revelados pelo barão do Rio Branco e à qualidade excepcional da exposição que fez dos argumentos nacionais, a sentença do árbitro, o presidente Cleveland, dos EUA, deu inteiro ganho de causa ao Brasil, assegurando o domínio sobre 36.000 quilômetros quadrados. De uma hora para outra, o ignorado funcionário se transformava em celebridade nacional.
Pouco depois, a reputação conquistada nesse caso inspirou sua escolha como representante do Brasil na contenda com a França por território contestado de 260.000 quilômetros quadrados na fronteira do Amapá. O problema era de novo a identificação de um rio, o Oiapoque ou de Vicente Pinzón, designado como limite no Tratado de Utrecht (1715). A questão foi submetida ao julgamento do presidente do Conselho Federal da Suíça, Walther Houser, que em 1º de dezembro de 1900 decidiu pela posição advogada por Rio Branco, o que consolidou sua fama de vencedor.
Foi tamanha a gratidão do país que o Congresso lhe concedeu um prêmio monetário e uma dotação anual transmissível a seus filhos. Não ficou nisso o reconhecimento. Decorridos menos de dois anos, quando o barão exercia as funções de ministro do Brasil em Berlim, o presidente eleito Rodrigues Alves o escolheu para seu ministro de Relações Exteriores, cargo que assumiu em dezembro de 1902.
Encontrou à sua espera o desafio mais espinhoso de toda a sua carreira. No extremo oeste da Amazônia, a região do Acre estava prestes a virar estopim de uma guerra com a Bolívia e o Peru. Diante da revolta dos seringueiros chefiados pelo rio-grandense Plácido de Castro, o governo boliviano, que não dispunha de presença local, resolveu arrendar o território a um consórcio de capitais internacionais, sobretudo americanos e ingleses.    
A situação se agravou quando o presidente da Bolívia, general Pando, anunciou a intenção de marchar à frente de uma expedição militar para sufocar a revolta. Rio Branco, ministro recém-empossado, não perdeu tempo. Demonstrando firmeza e capacidade de decisão, recusou a proposta peruana de negociação a três e isolou os adversários, tratando com cada um a seu tempo. Após prorrogar a proibição ao consórcio de navegação pelo Amazonas, único acesso ao Acre, o que tornava a concessão sem valor, adquiriu, mediante indenização de 110.000 libras esterlinas, a desistência dos especuladores e dos poderosos governos que os apoiavam.
Em seguida, obteve do governo brasileiro o envio de força militar que ocupou o território em litígio antes da chegada das tropas bolivianas. Dessa forma, pressionou o governo de La Paz a negociar, deixando claro, em todo o processo, que seu único intuito era tornar brasileira a região povoada por cerca de 60.000 compatriotas. Conseguiu que fosse assinado, em novembro de 1903, o Tratado de Petrópolis, pelo qual a Bolívia cedia 191.000 quilômetros quadrados (posteriormente, uma parte seria reconhecida como peruana). Em troca, o Brasil transferia quase 2.300 quilômetros quadrados em Mato Grosso, habitados por bolivianos, e pagava indenização de dois milhões de libras, hoje correspondentes a mais de 200 milhões de dólares. Além disso, comprometia-se a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.  
Na opinião do próprio barão, o Acre foi sua maior e mais difícil vitória. Evitando o recurso extremo à guerra, conseguiu-se garantir à soberania nacional um território desbravado e povoado por brasileiros. Dizia Rio Branco que o Acre era o único exemplo indiscutível de expansão das fronteiras do país.
Alertado pela crise acriana, o chanceler tomou a decisão de resolver de modo sistemático todas as questões fronteiriças pendentes. Além dos limites com a Argentina (1893), a França-Guiana Francesa (1900) e a Bolívia (1903), foram definidas as fronteiras com o Equador (1904), com a Inglaterra-Guiana Inglesa (laudo de 1904), com a Venezuela (1905), com a Holanda-Guiana Holandesa ou Suriname (1906), com a Colômbia (1907), com o Peru (1909), e o tratado de retificação com o Uruguai (1909).
Em poucos anos se concluía uma das maiores realizações da história diplomática de qualquer país: todas as questões com os vizinhos foram resolvidas por meio de negociações ou arbitramentos, jamais por guerras. Quando se compara aos países que possuem número de vizinhos similar ao do Brasil ou menor (Rússia, China, Índia, e mesmo Alemanha ou França), verifica-se que em nenhum caso se encontra padrão negociador sempre pacífico como no exemplo brasileiro.
Rio Branco dizia que havia construído o “mapa do Brasil”. Definir o espaço da soberania, a linha entre nós e os outros, é o primeiro ato de inserção de um país no mundo. O barão costumava dizer que era melhor negociar e transigir do que ir à guerra, pois o “recurso à guerra é sempre desgraçado”.
Além de solucionar todas as disputas limítrofes, soube perceber antes dos contemporâneos a emergência dos Estados Unidos como a nova potência dominante no cenário mundial. Receoso do agressivo imperialismo europeu de então, transferiu de Londres para Washington o eixo da diplomacia brasileira.
Em 1º de março próximo, aniversário do fim da Guerra do Paraguai, completaremos 142 anos de paz ininterrupta com todos os nossos vizinhos, proeza possivelmente única no mundo. Rio Branco não poderia desejar homenagem maior no centenário de seu falecimento do que a que hoje lhe presta o Brasil ao se manter fiel à centenária herança de paz, no momento em que ingressa “na esfera das grandes amizades internacionais a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população”.  

Rubens Ricupero foi embaixador do Brasil em Washington, Genebra e Roma, ministro do Meio Ambiente e da Amazônia e ministro da Fazenda. É autor de Rio Branco: O Brasil no mundo (Contraponto Editora, 2000).

Saiba Mais - Bibliografia
LINS, Álvaro. Rio Branco. 3ª ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1996.
VIANA FILHO, Luís. A vida do Barão do Rio Branco. São Paulo: Editora da Unesp, 2008


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