quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Posted: 30 Nov 2011 04:15 AM PST
O que seria apenas um conto, uma sátira aos sanatórios para tuberculosos, virou um calhamaço. Mas, se A Montanha Mágica cresceu em tamanho, não deixou de crescer igualmente em profundidade e tornar-se um romance imponente da literatura mundial, ajudando a consagrar (o seu autor, Thomas Mann). Com esta obra, contemplamos a cultura européia do século XX (lembrando das duas guerras mundiais) e, quem sabe, juntamente com o protagonista, passamos por um amplo processo “educacional”.
A Montanha Mágica conta a história de Hans Castorp, jovem engenheiro alemão que, ao visitar seu primo Joachim num sanatório para tuberculosos nos Alpes Suíços, manifesta sintomas da doença e acaba adiando seu regresso por um tempo indeterminado. Na montanha, Hans trava conhecimento com pessoas de diversas nacionalidades e participa, como uma espécie de aprendiz, de contendas intelectuais entre dois outros personagens importantes na obra: Lodovico Settembrini e Leo Naphta. Estes, por sua vez, são figuras antitéticas, representantes das principais idéias difundidas naquele tempo, mas que, não raro, tropeçam em argumentos contraditórios. A exposição de Hans a tais diálogos filosóficos e ao próprio ambiente do sanatório “contribuem para semear em Castorp dúvidas sobre temas cruciais da existência humana e desenvolverem-lhe o gosto por semelhantes questões”¹.
As vertentes interpretativas para a Montanha Mágica são variadas, o que não implica necessariamente em mútua anulação. Alguns preferem buscar as idéias de Nietzsche e Schopenhauer, outros, partindo da explicação de Thomas Mann (conferência dada na Universidade de Princeton), analisam-na como romance histórico ou do tempo (o tempo é um tema muito discutido pelo narrador), e assim por diante. Porém, acredito que a forma de se obter uma visão mais panorâmica e irrestrita da obra seja interpretando-a como o que os alemães chamam de bildungsroman, em outras palavras, como um romance de formação.
O que é, então, o bildungsroman? É o romance que narra a história do aperfeiçoamento do herói como ser humano, no sentido moral, psicológico, político, etc. O termo bildung se aproxima da paidéia dos gregos, ou seja, a formação do espírito humano, tendo em vista um ideal de Homem, os valores e os objetivos que regem sua vida. Essa educação está também vinculada à comunidade, não é meramente individual, pois ensina seu “lugar no mundo”¹. Seria bom até citar, sem entrar em pormenores, que a história da educação grega coincide com a da literatura². Assim sendo, podemos ainda adicionar que o objetivo do romance de formação não é apenas o de narrar o desenvolvimento do protagonista, é fazer com que o leitor, acompanhando os erros, acertos e reflexões do herói, seja educado pela arte.
Muito interessante é a explicação do próprio Thomas Mann da razão da Montanha Mágica ser um romance de formação: “O que ele aprende (Hans) a compreender é que toda saúde mais elevada deve ter passado pelas profundas experiências da doença e da morte, assim como o conhecimento do pecado é uma condição prévia da salvação (…) essa concepção de doença e morte como uma passagem necessária para o saber, para a saúde e para a vida torna a Montanha Mágica um romance de iniciação”. Esta afirmação já é capaz de nos lançar a ponderações filosóficas, às quais me abstenho aqui por motivos práticos. Contudo, é preciso afirmar que mesmo o leitor pouco conhecedor da filosofia do século XX pode fazer uma boa leitura. Logicamente, ele perderá o prazer de reconhecer a intertextualidade com filósofos importantes e outras sutilezas, mas nem por isso deixará de sentir a força da obra.
Durante todo o romance, Hans Castorp parece manter uma postura de distanciamento diante dos temas tratados, ouve as infindáveis disputas entre Naphta e Settembrini simplesmente por prazer e curiosidade. Settembrini sempre tenta alertá-lo quanto aos assuntos da “planície”, do ideal de civilização e do nosso dever de contribuir para a humanidade, para o progresso, “mas encontrara ouvidos moucos por parte de um discípulo que (…) imaginava, na verdade, isto ou aquilo das sombras espirituais das coisas, mas não se preocupava com as próprias coisas”³. Até que a guerra eclode e, como sob o efeito de uma trovoada, Hans acorda, “esfrega os olhos, como quem faz quem se omitiu”³.
Se Hans Castorp “desperta”, é do mesmo modo certo que não se perde entre aquelas elucubrações filosófica. Ele possui o distanciamento capaz de dotá-lo de uma postura mais analítica e de uma maior habilidade de escutar abertamente o que o outro tem a dizer. Por outro lado, ao contrário do que pensava, percebe como todos os ideais defendidos por Naphta e Settembrini estavam além do plano puramente intelectual, que possuíam uma força extraordinária no tocante ao rumo da nossa história.
O romance de Thomas Mann nos estimula à busca do nosso desenvolvimento como seres humanos, à abertura ao conhecimento e ao questionamento do mesmo, a assumir um papel ativo e crítico na sociedade. Finalmente, nos lembra da proximidade que os ideais representados na arte ou defendidos na filosofia têm em relação ao destino da humanidade. Esta é a catarse da Montanha Mágica para o leitor atual.

1 FONTANELLA, Marco Antonio Rassolin. A Montanha Mágica como Bildungsroman. Dissertação (Mestrado em Letras). Curso de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, 2000.
2 JAERGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
3 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
REED, T. J. Mann and History. In: ROBERTSON, Ritchie (ed.). The Cambridge Companion to Thomas Mann. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
BISHOP, Paul. The Intellectual World of Thomas Mann. In: ROBERTSON, Ritchie (ed.). The Cambridge Companion to Thomas Mann. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
MANN, Thomas. Extrato de Conferência apresentada por Thomas Mann em Maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton. Disponível na internet: http://citador.weblog.com.pt/arquivo/020393.html

Fonte: Carta Potiguar

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