A importância da cultura grega é inquestionável, embora raramente tenhamos plena consciência do seu alcance. Ela, juntamente com o Cristianismo e a cultura romana, constitui um dos grandes pilares formadores do “homem ocidental”. A tragédia, claro, está inserida nesse legado. Não só como gênero em si, mas também como expressão de ideais que recebemos de herança e que estão profundamente arraigados em nós. E em Prometeu Acorrentado, a única parte salva de uma trilogia esquiliana (as outras seriam, na sequência, Prometeu Libertado e Prometeu Portador do Fogo), Ésquilo lida com a idéia do destino e faz desse titã a imagem da condição humana, a qual é constantemente retomada por poetas e filósofos.
Ésquilo, o primeiro poeta trágico clássico, vivenciou os tempos difíceis da tirania na Grécia e lutou nas batalhas de Maratona e Salamina, ambas contra a invasão persa. Foi no espírito de vitória, de reconstrução de Atenas e do crescimento do Estado ático democrático que o poeta forjou suas peças. Era uma época em que todos uniam forças para se reerguer da tirania e da guerra. No papel de poeta, tido como algo até mais importante do que o de líder político, Ésquilo representou em suas peças “a ressurreição do homem heróico dentro do espírito da liberdade”¹, ou seja, ele conseguiu recriar o herói em uma nova conjuntura social ateniense (não mais havendo lugar para aquela aristocracia dos tempos homéricos), na qual o Estado e o espírito do povo formavam uma “unidade perfeita”¹. Além disso, de acordo com Aristóteles, Ésquilo foi o criador da tragédia grega e é a ele que se atribui muitas inovações no drama.
Na mitologia grega, Prometeu é um titã artesão que fez o homem, ao qual Minerva (deusa da sabedoria) daria a vida colocando uma borboleta (símbolo da alma) sobre sua cabeça. Ele, como diz Ovídio, “após destemperar um pouco de terra com água, formou o homem à semelhança dos deuses”². Como Zeus planejava aniquilar a raça humana, Prometeu resolveu proteger a sua criação e roubar o fogo divino, entregando-o aos mortais. O fogo simboliza aquilo que tornaria possível qualquer trabalho, que “é pai de todas as artes”³ e que faria a vida do homem mais segura. Por essa razão, Zeus decide punir Prometeu e a humanidade. O castigo dos mortais seria Pandora, mãe dessa “raça fraca e delicada das mulheres, que os mortais conservam para desgraça deles. Nunca amiga da pobreza nem sequer da poupança, só amam o luxo e os gastos”² (Hesíodo). Já Prometeu seria acorrentado numa rocha e um “cão alado (…), o abutre sanguinário” iria devorar pedaços do seu corpo e mastigar “a negra iguaria que é o seu fígado”³.
A obra Prometeu Acorrentado é uma reinterpretação do mito de Prometeu. Aqui, o mito é adaptado de uma maneira em que a tragédia passa a ter uma única idéia como princípio formador de toda sua estrutura. No caso de Ésquilo, a idéia é a do destino da humanidade. Para o dramaturgo, o destino estava atrelado a uma “justiça” divina inerente ao mundo e, consequentemente, a um nexo causal entre a violação dessa justiça e o sofrimento. Quando o homem incorre na hybris (tudo aquilo que passa da medida, que diz respeito ao exagero de orgulho e presunção), ou quando cai nas malhas da Ate (deusa que personifica as ações irreflexivas e suas conseqüências), ele recebe a desventura como forma de compensação do cosmos. Apenas buscando o autoconhecimento e a força de vontade diante dessas forças divinas, que tragam o homem para o erro, torna-se possível evitar a desgraça. Na visão de Ésquilo, o homem já detém certa responsabilidade diante do próprio destino, apesar de suas tramas ainda estarem longe do entendimento humano.
Mas, para Werner Jaeger, helenista alemão do século XX, o pecado do titã não está exatamente no roubo do fogo, e sim numa relação trágica e imperfeita deste benefício. Neste sentido, chegaríamos ao ápice de toda tragédia esquiliana: à profética concepção de que somente através da dor se alcança o conhecimento mais elevado. Quando violamos a ordem do mundo, “nasce no coração a pena que recorda a culpa; e, assim, é de contra a vontade que vem ao espírito a salvação” (trecho da peça Agamemnon), ou seja, a sabedoria. Porque a ordem sempre vence o caos e todos nós temos que nos submeter a ela, mesmo sem entendê-la. Só assim aprendemos a viver em harmonia com o cosmos eterno. Esse é o nosso destino.
O Prometeu esquiliano encarna essa dor do destino humano. É uma imagem coletiva, da humanidade. Nesta tragédia, contemplamos o “sentido da ‘harmonia de Zeus’, que os desejos e pensamentos humanos nunca poderão ultrapassar, e à qual, em último recurso, também a titânica criação da cultura humana terá de submeter-se”¹. Assim que ela foi interpretada por toda a posteridade, em que “todos se sentiram agrilhoados ao rochedo e frequentemente participaram no grito do seu ódio impotente”¹.
¹JAERGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
²MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Opus, 1991. 2 v.
³ESQUILO. Prometeu Acorrentado. Tradução de Alberto Guzik. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Fonte: Carta Potiguar
Ésquilo, o primeiro poeta trágico clássico, vivenciou os tempos difíceis da tirania na Grécia e lutou nas batalhas de Maratona e Salamina, ambas contra a invasão persa. Foi no espírito de vitória, de reconstrução de Atenas e do crescimento do Estado ático democrático que o poeta forjou suas peças. Era uma época em que todos uniam forças para se reerguer da tirania e da guerra. No papel de poeta, tido como algo até mais importante do que o de líder político, Ésquilo representou em suas peças “a ressurreição do homem heróico dentro do espírito da liberdade”¹, ou seja, ele conseguiu recriar o herói em uma nova conjuntura social ateniense (não mais havendo lugar para aquela aristocracia dos tempos homéricos), na qual o Estado e o espírito do povo formavam uma “unidade perfeita”¹. Além disso, de acordo com Aristóteles, Ésquilo foi o criador da tragédia grega e é a ele que se atribui muitas inovações no drama.
Na mitologia grega, Prometeu é um titã artesão que fez o homem, ao qual Minerva (deusa da sabedoria) daria a vida colocando uma borboleta (símbolo da alma) sobre sua cabeça. Ele, como diz Ovídio, “após destemperar um pouco de terra com água, formou o homem à semelhança dos deuses”². Como Zeus planejava aniquilar a raça humana, Prometeu resolveu proteger a sua criação e roubar o fogo divino, entregando-o aos mortais. O fogo simboliza aquilo que tornaria possível qualquer trabalho, que “é pai de todas as artes”³ e que faria a vida do homem mais segura. Por essa razão, Zeus decide punir Prometeu e a humanidade. O castigo dos mortais seria Pandora, mãe dessa “raça fraca e delicada das mulheres, que os mortais conservam para desgraça deles. Nunca amiga da pobreza nem sequer da poupança, só amam o luxo e os gastos”² (Hesíodo). Já Prometeu seria acorrentado numa rocha e um “cão alado (…), o abutre sanguinário” iria devorar pedaços do seu corpo e mastigar “a negra iguaria que é o seu fígado”³.
A obra Prometeu Acorrentado é uma reinterpretação do mito de Prometeu. Aqui, o mito é adaptado de uma maneira em que a tragédia passa a ter uma única idéia como princípio formador de toda sua estrutura. No caso de Ésquilo, a idéia é a do destino da humanidade. Para o dramaturgo, o destino estava atrelado a uma “justiça” divina inerente ao mundo e, consequentemente, a um nexo causal entre a violação dessa justiça e o sofrimento. Quando o homem incorre na hybris (tudo aquilo que passa da medida, que diz respeito ao exagero de orgulho e presunção), ou quando cai nas malhas da Ate (deusa que personifica as ações irreflexivas e suas conseqüências), ele recebe a desventura como forma de compensação do cosmos. Apenas buscando o autoconhecimento e a força de vontade diante dessas forças divinas, que tragam o homem para o erro, torna-se possível evitar a desgraça. Na visão de Ésquilo, o homem já detém certa responsabilidade diante do próprio destino, apesar de suas tramas ainda estarem longe do entendimento humano.
Mas, para Werner Jaeger, helenista alemão do século XX, o pecado do titã não está exatamente no roubo do fogo, e sim numa relação trágica e imperfeita deste benefício. Neste sentido, chegaríamos ao ápice de toda tragédia esquiliana: à profética concepção de que somente através da dor se alcança o conhecimento mais elevado. Quando violamos a ordem do mundo, “nasce no coração a pena que recorda a culpa; e, assim, é de contra a vontade que vem ao espírito a salvação” (trecho da peça Agamemnon), ou seja, a sabedoria. Porque a ordem sempre vence o caos e todos nós temos que nos submeter a ela, mesmo sem entendê-la. Só assim aprendemos a viver em harmonia com o cosmos eterno. Esse é o nosso destino.
O Prometeu esquiliano encarna essa dor do destino humano. É uma imagem coletiva, da humanidade. Nesta tragédia, contemplamos o “sentido da ‘harmonia de Zeus’, que os desejos e pensamentos humanos nunca poderão ultrapassar, e à qual, em último recurso, também a titânica criação da cultura humana terá de submeter-se”¹. Assim que ela foi interpretada por toda a posteridade, em que “todos se sentiram agrilhoados ao rochedo e frequentemente participaram no grito do seu ódio impotente”¹.
¹JAERGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
²MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Opus, 1991. 2 v.
³ESQUILO. Prometeu Acorrentado. Tradução de Alberto Guzik. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Fonte: Carta Potiguar
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