As raças não existem... Mas o racismo, sim!
Com um vasto currículo, historiador, ao relembrar fatos polêmicos da nossa história, como a da escravidão negra vinda da África, faz declarações polêmicas com relação à desigualdade, violência nas universidades do país e outros temas relacionados às artes e às cidades
Por Flávia Bastos
Relembrar fatos, contar história, destacar acontecimentos não é tarefa para qualquer um. Mas, para o historiador dono de um doutorado na Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ) não parece ser um grande desafio. José D'Assunção Barros é historiador, professor de História e autor dos livros O Campo da História (2004); O Projeto de Pesquisa em História (2005); Cidade e História (2007); A Construção Social da Cor (2009) – que traz informações preciosas e reveladoras sobre a época da escravidão negra, trazida dos países africanos; e Teoria da História (2011) – em quatro volumes; além do livro Raízes da Música Brasileira (2011).
Entre diversas pesquisas, dissertações e teses, José Barros se aprofundou também em temas como História da Arte, Cultura, e estudos voltados ao Cinema e à Música Erudita. Além disso, é autor de diversos artigos publicados em revistas e jornais especializados, com temas passando por diferenças e igualdades em que demonstra o preconceito como um componente destruidor para a evolução e democracia de um país em busca da evolução. Nas próximas páginas ele comenta questões importantes, como a do sistema de cotas nas universidades, em que defende uma revisão do tema: “a forma de cotas deveria ser pensada mais nos aspectos de divisões sociais geradas pela riqueza e pobreza. E não na questão étnica”, que, segundo ele, “não existe”. José Barros fala, ainda, da história das ideias, poesia e poder – ao qual atribui um forte instrumento capaz de grandes transformações.
Conheça mais sobre seus projetos na entrevista que concedeu, exclusivamente, para a revista Leituras da História:
Leituras da História – O sr. tem um estudo sobre “Desigualdades e Diferenças” transformado em artigo para universidade de Lisboa, sob o título Igualdade, Desigualdade e Diferença: em Torno de Três Noções. Quais seriam essas noções?
José D'Assunção Barros – Nesse estudo, começo a desenvolver uma reflexão conceitual que mais tarde iria possibilitar a elaboração de um dos meus livros: A Construção Social da Cor. O objetivo deste artigo publicado na revista Análise Social, de Lisboa, foi discutir as relações entre as noções de igualdade, desigualdade e diferença, e, sobretudo, mostrar que frequentemente confundimos desigualdades com diferenças, e vice-versa. Principalmente, interessei-me em mostrar que, em diversas ocasiões, essa confusão pode fortalecer violências simbólicas ou efetivas e, às vezes, fazem parte de sofisticados projetos de dominação e opressão a certos grupos sociais.
Por exemplo, homens e mulheres constituem duas “diferenças” básicas relacionadas ao gênero; se pensarmos nessas diferenças como desigualdades, cometemos uma violência. Na Idade Média, a filosofia escolástica de Tomás de Aquino concebia a mulher como um “homem inacabado”. O que essa leitura filosófica fazia era, precisamente, reler uma diferença como desigualdade. A singularidade feminina é, nesse caso, aferida em comparação com especificidades masculinas, sem considerar a mulher como uma diferença. A “escravidão” é, na verdade, uma desigualdade, pois o escravo é o ser humano que perdeu a liberdade – um indivíduo não “estava” escravo, mas “era” escravo. Esse deslocamento de uma categoria que deveria se relacionar a uma circunstância – uma desigualdade –, para uma categoria que se refere a uma essência – o que remete a uma diferença –, era a base imaginária desse cruel sistema de exploração que foi o escravismo.
“Um indivíduo não ‘estava’ escravo, mas ‘era’ escravo. Esse deslocamento de uma categoria que deveria se relacionar a uma circunstância para outra que se refere a uma essência era a base imaginária desse cruel sistema de exploração que foi o escravismo”
José D’Assunção Barros |
Nesse sentido, a escravidão moderna foi muito mais violenta que a escravidão praticada nas sociedades antigas. Estas reconheciam a escravidão como uma “desigualdade radical”, enquanto que as sociedades modernas tendiam a ver os escravos capturados na África como uma diferença. O escravo, na maior parte do período colonial, não era apenas o “estrangeiro absoluto” dos antigos gregos, mas perdia até mesmo a sua humanidade mínima. Existe tanto uma violência ao deslocar diferenças para o âmbito da desigualdade, como também ao deslocarmos desigualdades para o campo das diferenças.
LDH – E o problema histórico da escravidão de africanos nos tempos do Brasil Colonial e do Brasil Império?
JDB – Escrevi alguns artigos sobre a questão do escravismo nas sociedades modernas. Depois, a minha pesquisa em torno desse tema adquiriu maior fôlego e resultou em um livro que publiquei em 2009: A Construção Social da Cor. Neste livro, procuro examinar o problema do escravismo a partir do referencial teórico, que acabei de citar. A escravidão moderna, inclusive no Brasil Colonial e no Brasil Império, ergueu-se sobre a leitura de uma desigualdade radical (a escravidão) como “diferença”. Nesse sistema, passava-se a associar “negro”, “africano” e “escravo”, e a enxergar como uma “diferença” o indivíduo aprisionado por esse entrelaçamento de categorias. Os abolicionistas, nos seus libelos antiescravistas, precisaram desconstruir esse discurso que convertia o escravo em diferença. O africano ou afrodescendente escravizado não “era” escravo, como sustentavam os setores mais opressivos do sistema escravista, mas “estava” escravo.
LDH – Fale mais sobre esse trabalho...
JDB – No livro, procuro mostrar, acompanhando diversos autores recentes, recentes, que a visão da humanidade como se estivesse dividida em “raças” é apenas uma construção social e cultural. As pessoas se acostumaram – e aprendem isso todo o tempo – a enxergar, no conjunto dos seres humanos, raças baseadas em critérios relacionados à aparência física, dos quais o mais marcante é a cor da pele. Contudo, falar em homens brancos e negros é mera construção, não é um dado natural. As raças, na verdade, não existem – nem no sentido biológico, nem no sentido antropológico. Em contrapartida, o racismo existe! Esse é um dos paradoxos mais impressionantes das sociedades. O racismo é uma realidade social, uma vez que as pessoas se acostumaram a enxergar a sociedade como sendo dividida em raças e isso acaba estruturando as suas maneiras de se relacionarem uns com os outros. Na obra, procuro mostrar como foi se estabelecendo, historicamente, essa maneira de ver as coisas – e quais as contradições daí decorrentes.
LDH– Qual a lógica dos termos “diferença negra” e “diferença escrava” – utilizada pela elite senhorial?
JDB – A “diferença negra” é uma construção, pois, na época em que foi implantado o tráfico negreiro, os africanos não se viam como negros; eles se viam reciprocamente como zulus, ibos, tekes, nuers, e centenas de outras identidades africanas que são bem vivas ainda hoje no continente africano. Todavia, para o sistema escravista funcionar, era preciso superpor a essas várias identidades africanas uma identidade maior, a “diferença escrava”.
LDH – Em sua opinião, ainda existe preconceito dessa forma no país? Como ele atrasa a evolução das pessoas e da comunidade?
JDB – Claro. Acreditar que existem raças, e, mais, que existe uma hierarquia de raças, umas mais capazes que outras, não pode, senão, atrasar ou prejudicar o desenvolvimento de uma sociedade como a nossa, cuja maior virtude é a diversidade e a riqueza genética. O talento, a capacidade, o caráter, a inteligência, a criatividade – nada disso está atrelado ou hierarquizado de acordo com a aparência física, com o sexo, com a procedência. Quando agimos orientados pelo preconceito, prejudicamos o livre afloramento daquilo que há de melhor em cada um dos diversos seres humanos; reduzimos as possibilidades de esse ser humano atuar livremente e em um regime de plena igualdade. O preconceito bloqueia talentos, tolhe as oportunidades de indivíduos que poderiam prosperar mais, conduz sempre as mesmas pessoas ao poder político, perpetua desigualdades.
“Os filmes brasileiros produzidos nas últimas décadas têm conseguido partilhar as salas de exibição com os filmes estrangeiros, em especial os americanos, que possuem toda uma máquina de apoio por trás de sua produção e divulgação”
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Fonte: Portal Ciência & Vida
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