terça-feira, 30 de abril de 2013

Um Brasil, muitas Áfricas

Iorubás e ambundos foram importantes na formação do Brasil, mas apenas parte de um grande coro, composto de gente de quase toda a África subsaariana

Alberto da Costa e Silva
1/3/2012
 

O tráfico transatlântico trouxe para o Brasil escravos provenientes de mais de uma centena de povos africanos. Acima, casais de Senegal, Benim e Congo, em gravuras de Grasset de Saint-Sauveur.
De que África teria saudades um africano no Brasil? De sua aldeia, certamente, ou do bairro da cidade onde passou sua infância. No Brasil, deixara de ser conhecido por sua terra natal, pelo seu clã, pelo nome que o seu povo dava a si mesmo ou recebia dos vizinhos. Exceto para ele e para os conterrâneos ou vizinhos que encontrava no exílio, não era mais um iaca, auori ou gun: passara a ser chamado angola, nagô ou mina, e africano, e negro. Na fazenda ou na cidade onde penava, podia haver quem falasse o seu idioma ou outro próximo, e até quem fosse de seu vilarejo e seu malungo, ou companheiro de barco na travessia do Atlântico. Por toda parte, porém, encontrava gente estranha, de outras Áfricas que não a sua, com tradições, crenças, valores, costumes, saberes e técnicas diferentes. Este, em sua terra, andava de camisolão até os pés e gorro na cabeça, aquele não tinha mais do que um pano entre as pernas, amarrado na cintura. Aqui, as mulheres entrançavam os cabelos com contas e conchas; ali, cobriam a cabeça com véu ou turbante; acolá, raspavam o crânio. Umas vestiam-se apenas com miçangas, outras com bubus, ou envolviam o corpo com panos coloridos, e todas exibiam muitos colares e argolas nos braços e nos tornozelos. Cada um de nós não domina mais do que uma pequena parcela de sua cultura. Nem todos os sossos da Guiné e outros africanos que produziam ferro de alta qualidade sabiam operar um forno ou uma forja, mas alguns poucos, sim. No Brasil, os que já eram ferreiros ou apenas conheciam rudimentos do ofício construíram fornos conforme o modelo predominante em sua terra. Isso explica o fato de terem existido fornos tão diferentes em Minas Gerais, às vezes a pouca distância uns dos outros.
Os africanos não se restringiram a ser os pioneiros da metalurgia de ferro no Brasil. Desde muito acostumados à cata do ouro ? do qual, durante séculos, algumas regiões como o Rio Falemé, o Alto Níger, o país acã e o planalto de Zimbábue foram os principais fornecedores da Europa e do mundo muçulmano ?, trouxeram com eles as técnicas da bateia e de escavação de minas. Alguns eram bons ourives, que criavam, na África, joias de grande beleza, como as dos axantes, e passaram a fazê-las com novos modelos no Brasil.
Sabiam como criar o gado fora dos estábulos, solto no campo, e o foram multiplicando e espalhando savanas afora, savanas muito semelhantes às que haviam deixado na África. Pouco valiam no Brasil as lições dos campinos do Ribatejo, e muito as dos fulas (ou fulanis) e hauçás (ou haussás). Como as práticas agrícolas portuguesas lhes foram impostas, só puderam plantar do modo a que estavam acostumados em suas pequenas roças e nos quilombos. Apesar disso, aqui e ali aplicaram os seus saberes, como os balantas e outros negros da Alta Guiné no cultivo do arroz no Maranhão. E trouxeram para o país muitos vegetais, como o dendê, a malagueta, o maxixe e o quiabo, básicos na cozinha brasileira, que enriqueceram com novas comidas. Assim como ocorria na África, as mulheres iam vendê-las nas ruas. E continuam a fazê-lo até hoje, em Salvador como em Lagos, e a fritar o acarajé num fogareiro, diante do freguês.
Aos africanos deve-se também que se tenham produzido, sobretudo nas grandes propriedades rurais, e ao arrepio das proibições régias, tecidos para uso dos escravos, em teares extremamente simples, horizontais ou verticais, conforme a região de origem do tecelão ou da tecelã. Repetiu-se aqui o que sucedera no arquipélago de Cabo Verde, grande exportador de panos, onde os portugueses esqueceram os teares europeus em favor dos africanos.
A cabana em que vivia esse tecelão era construída como na África: as paredes de sopapo e o teto de folhas de palmeira ou de capim. Ainda que competindo com o mocambo de palha de tradição ameríndia, a morada do pobre no Brasil seria, durante muito tempo, de sopapo, à africana, e não de taipa de pilão ou de pedra, como em Portugal. Não prosperaram aqui as cabanas cônicas; impôs-se a de planta quadrada, com teto em duas águas, que, no Brasil, ganhou janela. Já a casa dos ricos, trazida de Portugal, recebeu da África do Oeste, e talvez também da Índia, o alpendre na frente ou nos fundos, e nele, lá como cá, passava-se boa parte da vida.
Nessas varandas, as crianças ouviam os relatos fantásticos de diferentes nações africanas, cujos personagens e enredos se mesclavam entre si e com os ameríndios e europeus, de tal modo que se tornava difícil separar o Curupira dos tupis do moatia dosaxantes, pois ambos, do tamanho de anões, tinham os pés virados para trás e eram os senhores dos animais selvagens. Vindos da África, bichos-papões, jogos e brinquedos desembarcaram no Brasil. E lembranças de desfiles de reis, com seus enormes guarda-sóis coloridos, que, no Brasil, se reproduziram nos maracatus, nas congadas e nos reisados.
Nesses desfiles reais, ouviam-se tambores, agogôs, pífanos e numerosos outros instrumentos que eram deles e são nossos. Esses instrumentos animavam as festas nos dois lados do Atlântico, com ritmos e melodias que se foram transformando, ao se entrelaçarem com as europeias, na nossa música.  
Não se dançava na África apenas pela alegria do convívio. Dançava-se também para reverenciar os deuses e recebê-los na alma. Foram muitas as religiões que atravessaram o oceano, pois cada povo tinha a sua. Algumas absorveram outras crenças ou foram por elas absorvidas, gerando novos sistemas religiosos, como a umbanda. Outras não deixaram vestígios. Mas a uma das religiões trazidas da África, a dos orixás, converteram-se em grande número, principalmente no Brasil e em Cuba, pessoas de outras origens, e o que era a religião dos iorubás tornou-se uma religião universal.         
Por iorubás passaram a ser designados, desde a metade do século XIX, diferentes grupos que, na atual Nigéria, na República do Benim e no Togo, falam a mesma língua, embora com variações dialetais, possuem culturas semelhantes e se aglutinavam em torno de cidades-estado, compartilhando muitas tradições, ainda que em alguns casos pudessem ser diferentes e até mesmo conflitantes. Tidos como iorubás (e, no Brasil, também nagôs), sabiam-se oiós, ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás, ijebus, equitis, ondos, igbominas ou de outras nações. Assim também os falantes de quimbundo, os ambundos de Angola, compreendiam vários grupos com dialetos e culturas diferenciados, entre os quais andongos, dembos, hungos, quissamas, songos, libolos e bângalas.
Os vários grupos iorubás e, ainda mais, os ambundos tiveram grande importância na formação do Brasil. Mas foram apenas parte de um grande coro, composto de gente de quase toda a África subsaariana. De certas regiões vieram números enormes; de outras, pouquíssimos. Houve quem fosse obrigado a longuíssimas viagens, do centro do continente até os portos litorâneos, e se conhecem casos de cativos feitos a oeste do Rio Cuanza e embarcados em Moçambique.
Enriquece o quadro saber-se que havia ligações preferenciais entre portos brasileiros e africanos. O Rio de Janeiro, por exemplo, vinculava-se sobretudo aos portos de Angola, Congo e Moçambique, e recebia, por isso, não só pessoas dos diferentes grupos ambundos, mas também, entre muitos outros, congos, sossos, iacas, vilis, huambos, lubas, galangues, bailundos, luenas, macuas e tongas. Salvador comerciava intensamente com o golfo do Benim, e em seus portos embarcavam fons, iorubás, mahis, ibos, ijós e efiques, além de indivíduos das savanas mais ao norte, hauçás, nupes (ou tapas), baribas e bornus. De São Luís do Maranhão ia-se com facilidade à Alta Guiné, e de Cacheu e Bissau lhe chegaram mandingas, banhuns, pepeis, felupes, balantas, nalus e bijagós.
Para o Brasil foram trazidos africanos de mais de uma centena de povos diferentes. Muitos deles já se conheciam na África, por serem vizinhos ou terem comércio entre si. Um gã se entendia com os evés, os acuamus e os auoris, que viviam na mesma região e tinham costumes parecidos, e talvez até mesmo com os hauçás que se aproximavam do litoral para comerciar, pois era comum que um africano falasse mais de um idioma: o seu e outro ou outros que aprendera no convívio do mercado ou com as esposas de seu pai, algumas delas estrangeiras. E as diferenças eram compensadas pelas semelhanças, em processos contínuos de mestiçagem física e cultural. Algumas vezes, dois ou mais povos se entrelaçavam e criavam um novo, como fizeram os africanos que foram coformadores do Brasil.      
           
Alberto da Costa e Silvaé membro da Academia Brasileira e Letras e autor de Um rio chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2003).
 
Saiba Mais - Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933.
RAMOS, Arthur. Introdução à Antropologia brasileira, vol. I. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1943.
RAMOS. Arthur. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956.

Fonte:  http://www.revistadehistoria.com.br/secao/dossie-imigracao-italiana/um-brasil-muitas-africas

Um comentário:

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