Posted: 03 Oct 2012 05:02 AM PDT
Por Alípio Sousa Filho
(Sociólogo e Professor do Dep. de Ciências Sociais – UFRN)
Causa espanto saber que a Assembléia Legislativa do Estado aprovou
por unanimidade e a Governadora sancionou lei criando o feriado estadual
de 3 de outubro para culto público e oficial dos chamados mártires de
Uruaçu e Cunhaú. A lei estadual 8.913, de 6 de dezembro de 2006, é um
insulto aos nossos indígenas de ontem e de hoje e um atentado aos
princípios do Estado Laico. Inconcebível que seja o próprio Estado a
colaborar com a igreja católica nos seus intentos de criar beatos,
santos, mártires, milagres etc. e a partir de qualquer história forjada e
narrada como se quer.
O
que se chama de massacre dos mártires de Uruaçu e Cunhaú (mártires
católicos!, pois do outro lado estavam protestantes holandeses e
indígenas) é fato ocorrido no século XVII e não difere de outras
situações que o território brasileiro conheceu, em todas as partes, no
período colonial. No fundo, o que se visa exaltar é a fé católica que,
nesse mesmo período histórico, foi responsável pela morte de milhões de
indígenas.
Os tapuias e potiguares que habitavam a região e que, ao lado de
holandeses calvinistas, figuram na narrativa construída sobre o tal
martírio, que agora se visa cultuar, faziam parte da grande civilização
indígena aqui existente que, pela catequese cristã e predominantemente
católica, viu ser dizimados três milhões de seus integrantes nos três
primeiros séculos da colonização.Que cidadãos, isolados ou em grupos
organizados, queiram praticar suas crenças, organizar e participar de
romarias (a cavalo, em paus-de-arara, bicicletas, motos, carros ou a
pé), que as igrejas, incluindo a dos católicos, queiram difundir suas
crendices, incluindo inventar milagres e os santos milagreiros, que o
façam no usufruto dos direitos que são os seus.
Todavia, o Estado não pode ser cúmplice do absurdo que é tornar
feriado um dia da semana para culto de uma narrativa que insulta os
indígenas de ontem e de hoje.Os poderes Legislativo e Executivo
estaduais, com a criação do feriado de 3 de outubro, dão mostras que não
praticam a laicidade exigível desses poderes no âmbito da esfera
pública e estatal e confirmam que, no Brasil, o Estado, longe de ser
laico, permanece vergonhosamente submetido, pelas mãos de seus
dirigentes, aos ditames e interesses de igrejas e religiões. Os
interesses da igreja católica (ou de qualquer outra) não podem ser
colocados acima do caráter universalista que o Estado está obrigado a
preservar para permanecer como esfera autônoma, independente. Esta que é
a única condição do Estado poder legitimamente representar a sociedade
como um todo e agir pela sua emancipação social, livrando-a do domínio
de crenças sem fundamentos que se tornam obstáculos aos seus avanços
culturais, sociais. No Brasil, são inúmeros os exemplos de ações das
igrejas, contrariando a implementação de medidas emancipatórias pelo
Estado.
Multinacional capitalista, que enriquece com a mais-valia da fé alheia explorada, mas continuamente sedenta de criar santos e milagres para a conservação do seu domínio sobre uma população pobre e abandonada à sua própria miséria (emocional, cultural, econômica), a igreja católica não pode contar com a cumplicidade dos dirigentes do Estado para realizar seus intentos.
O fato representa uma tomada de posição desses dirigentes em favor de
um segmento da sociedade, e apenas de um de seus segmentos, ferindo o
principio da laicidade e da universalidade de valores a predominar e a
ser preservado pelo Estado no âmbito das decisões político-públicas.
Se há algo a ser feito sobre o que se passou em 1645 é o Estado
narrar a tragédia de nossos indígenas, vencidos pela violência,
dividindo-se, em desesperadas estratégias, entre os colonizadores.
Fonte: Revista Potiguar
Fonte: Revista Potiguar