segunda-feira, 23 de maio de 2011

Onde as minorias não têm vez



O preconceito é uma interpretação coletiva e duradoura. Por Dulce Critelli. Foto: Edson Silva/Folhapress
Artigo produzido para a edição 56 de Carta na Escola



De tempos em tempos a mídia noticia uma série de atos decorrentes de preconceito. Melhor, de violência provocada pelo preconceito. Há alguns anos foram os crimes contra indígenas e indigentes moradores de rua, incendiados por jovens bem-nascidos. Depois, estupro de moças e mulheres da classe C também por jovens pertencentes a classes sociais abastadas. Há cerca de um ano e meio, foi o caso de Geisy Arruda, a aluna da Uniban agredida em razão da forma de se vestir. Mais recentemente, soubemos dos jovens que, num rodeio, pulavam sobre moças gordas como se essas fossem gado.

Publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, há relatos sobre discriminação raivosa contra alunos que ingressaram na universidade, ou, por meio de bolsas destinadas a estudantes de baixa renda, ou ainda, pelo programa de cotas raciais, o ProUni. Esses estudantes são alvos de exclusão, desprezo, ofensas pessoais e agressões verbais dirigidas à sua cor, aparência, roupas, à expressão de suas ideias, seu tipo de cabelo e, inclusive, são acusados de trazerem para a instituição um rebaixamento da qualidade de ensino.

Os casos mais recorrentes e divulgados atualmente são os ataques a homossexuais. As tevês e os jornais mostraram, diversas vezes, rapazes agredindo com uma lâmpada fluorescente um jovem, na Avenida Paulista, pelo simples fato de ele ser gay. A ONG Safernet tem dados que acusam um aumento de denúncias homofóbicas na internet, na proporção de 88% de 2009 para 2010, enquanto as denúncias de racismo, no mesmo período, caíram 57% e as de neonazismo 65%.

O Estadão informa que entre os sites de relacionamento nas redes sociais há aqueles criados especialmente com conteúdo homofóbico, nos quais não apenas se expressa o preconceito, mas se discute- onde e como matar homossexuais.

O Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo elaborou um mapa de lugares de agressões, indicando que 50% dessas ocorrem no centro expandido de São Paulo, que inclui a região da Paulista. Informa, também, e isso é preocupante, que boa parte dos agressores conhece sua vítima: 16% são da própria família e 38% são conhecidos, vizinhos, colegas de trabalho.

Construções sociais
Politicamente incorretos e indesejados, preconceitos são inevitáveis. Eles derivam do fato de que os seres humanos existem construindo interpretações sobre as mais variadas situações e pessoas e, para tanto, se apoiam em seus costumes e crenças. Daí, o que contraria e se diferencia de tais crenças, num primeiro impulso é contestado e recusado.

Essas interpretações, no entanto, não são propriamente preconceitos.
Para se transformarem em um preconceito, as interpretações carecem de ser aceitas por uma comunidade e permanecer em seu seio por um tempo suficiente para ser imediata e irrefletidamente reconhecidas como verdades incontestáveis. O preconceito é uma interpretação coletiva e duradoura.

A força de um preconceito reside justamente no fato de ser mantido, em conjunto, por uma comunidade. Um preconceito depende de que várias pessoas acreditem nele a ponto de serem mobilizadas por ele. Desse modo, costumam se instaurar como índices da cultura de uma comunidade política (meu bisavô, português, não queria o casamento de sua filha com meu avô por ele ser italiano, a ponto de trancá-la em casa para impedir o namoro. Fracassadas todas as investidas, não compareceu ao casamento deles e sumiu por uma semana).

O que mais assusta e inquieta no preconceito é que ele mobiliza vigorosamente as pessoas promovendo, invariavelmente, alguma forma de agressão. Quando movidas pelo preconceito, as pessoas e as comunidades são, normalmente, raivosas e intolerantes. A intolerância religiosa é um exemplo bem conhecido dos nossos tempos, assim como a intolerância ideológica e a racial. E bem conhecidos são as destruições, o terror e a cadeia ofensiva que desencadeiam.

Extermínio natural
O que tem provocado perplexidade, hoje, é que os ataques preconceituosos têm sido acompanhados por uma espécie de desfaçatez. Os agressores agem como se a violência praticada fosse uma reação natural e justificada intrinsecamente à sua crença.

Penso que o cinismo da violência preconceituosa é herança dos movimentos e governos totalitários que eclodiram no século XX. O nazismo na Alemanha, o stalinismo na Rússia, o comunismo na China viam o extermínio como o mais natural recurso – fosse dos inimigos do regime, fosse dos indivíduos e/ou “raças impuras”, fosse das “classes agonizantes”.

Entendiam que nas leis ou da Natureza, ou nas leis da História, estavam inscritos, para um futuro distante, uma raça humana perfeita (a ariana), tanto quanto uma sociedade sem classes. Também o conhecimento dessas leis mostrava que nesse destino último, as pessoas doentes física e psiquicamente, as raças impuras como a dos judeus – no caso do nazismo –, e as classes abastadas, imperialistas – no caso do comunismo –, desapareceriam.

Indivíduos, raças e classes que não existiriam no futuro, comprovavam que elas já não deveriam ter existido no passado, nem seriam aceitas no presente. A previsão da sua futura extinção não só justificava, mas exigia que medidas que visassem sua eliminação fossem tomadas. Portanto, o extermínio nem sequer era visto como um mal necessário, porque ditado pelas leis ou da Natureza, ou da História, transcendentes à vontade dos homens, era apenas o que era para ser. O fim justifica e exige os meios: o terror.
Tudo o que sempre esteve inscrito no coração do homem como o mal radical, isto é, agir contra seu irmão (lembre-se de Caim e Abel), por meio dos movimentos e governos totalitários desaparece. Com o extermínio admitido como gesto natural e corriqueiro, o mal deixa de ser entendido como mal. Portanto, a consciência moral submerge. A isso Hannah Arendt, pensadora contemporânea, chama de “banalização do mal”.

Os totalitarismos nos legaram a destituição do mal e da consciência moral. A intolerância ativa é sua manifestação. Assim como desfaçatez, que tanto chama a atenção na violência cometida em nome do preconceito, na cânula da lâmpada fluorescente estilhaçando contra o jovem homossexual na Avenida Paulista.

Dulce Critelli é doutora em Psicologia da Educação, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP e Terapeuta Existencial

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Crer, o que significa?

Em sua coluna de maio, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte aborda um dos temas que mais geram polêmica, tanto no meio acadêmico quanto fora dele: a religião. A recente construção do ateísmo militante é um de seus focos. 
 
Por: Luiz Fernando Dias Duarte
Publicado em 13/05/2011 | Atualizado em 13/05/2011
 
Os fenômenos religiosos, desdenhados por grande parte dos cientistas exatos e naturais, são intensamente estudados pelas ciências humanas em sua busca pela compreensão do sentido da vida. (foto: Marco Caliulo/ Scx.hu)
Um dos tópicos mais favoráveis à emergência de desentendimentos entre cientistas sociais e colegas de outras áreas é o da religião ou crença. Embora haja muitos cientistas que não se considerem ateus ou agnósticos, a imensa maioria tende a considerar o empreendimento científico em si diametralmente oposto a qualquer coisa que cheire a místico ou religioso, inquietando-se enormemente com ameaças de intrusão da superstição na seara da razão.
Quase todos ignoram que possa existir algum tipo de análise ou interpretação dos fenômenos religiosos – e que a antropologia dedique-se intensamente a essa tarefa. Na medida em que nos dispomos a conhecer o sentido da vida humana, nada nos interpela mais que o conhecimento das ubíquas, permanentes e intensas experiências e crenças religiosas.
Um dos primeiros pontos a esclarecer é o próprio foco do problema. Embora se considere em nossa cultura que exista uma área da vida social que se pode reconhecer facilmente como “religiosa” (templos, divindades, espíritos, rituais, crenças, orações, devoção etc.), essa não é a realidade na maior parte das culturas. E, na verdade, não é sequer inteiramente na nossa.
Considera-se como “religiosa” a dimensão de cada sistema simbólico que se ocupa das ordens mais abrangentes de significado
Do ponto de vista mais abstrato possível, considera-se como “religiosa” a dimensão de cada sistema simbólico que se ocupa das ordens mais abrangentes de significado, sejam elas cósmicas, morais ou cognitivas. Assim, na cultura chinesa clássica, o confucionismo desempenhava, a nossos olhos, um papel religioso – embora nem sequer exista uma palavra chinesa que traduza sem esforço as categorias herdadas do latim religio.
Ocorreu-me tratar de tão espinhosa questão ao ler a tese recente de Flávio Gordon intitulada ‘A cidade dos Brights: religião, política e ciência no movimento neoateísta’, defendida no Museu Nacional.
O autor se debruça sobre a recente construção de um ateísmo militante, portado sobretudo por cientistas naturais, que inclui o movimento chamado “bright”. O termo foi escolhido para valorizar a atitude ateísta, ao modo como a adoção do termo positivo “gay” teria sido eficiente para o movimento de afirmação homossexual.
Gordon endossa um juízo presente na literatura que considera o movimento uma “espécie de fenômeno religioso”; chegando-se mesmo a falar de “ateísmo militante”, “ateísmo fundamentalista” ou “ateísmo evangélico”.
Mais especificamente, o autor qualifica essa forma exacerbada do secularismo moderno, do materialismo iluminista, como uma retomada da tradição da Gnose dos primeiros séculos cristãos, uma heresia associada à revolta contra a Criação, ao desprezo pelo mundo tal como se apresenta e à busca de uma superação pelo conhecimento. 

Ideologia cristã

O paradoxo de um ateísmo religioso é uma boa introdução à série de paradoxos que cerca o trato científico de tais questões em nossa cultura. A ideia de religião que atravessa o senso comum ocidental é uma reverberação do cristianismo, a ideologia religiosa central de nossa tradição.
Trata-se de uma “religião de salvação” e – como tal – lida com uma peculiar combinação entre este mundo e um além (objetivo da salvação, justamente). Uma sólida literatura associa alguns de seus princípios cosmológicos centrais ao cerne mesmo da cultura ocidental.
O principal é o de sua ênfase na salvação de uma alma pessoal, estritamente individualizada, em função da combinação entre pecado original e livre-arbítrio. Essa ênfase individualista implica uma adesão consciente à experiência religiosa (uma conversão) e não um simples pertencimento a uma comunidade.
Também é fundamental o fato de que ela aspira a uma transcendência sempre fortemente atrelada à imanência: toda a vida do Cristo é uma costura fascinante entre espírito e matéria, carregada de duradouras implicações simbólicas.
Culto da razão e do ser supremo
O culto da razão e do ser supremo (retratado na pintura) durante a Revolução Francesa é um exemplo da imbricação entre a afirmação da racionalidade moderna e as formas de religiosidade mais ou menos evidentes. (imagem: Wikimedia Commons)
Esse naturalismo sempre distinguiu fortemente a cultura cristã das demais religiões de salvação. E acabou marcando o destino da noção de verdade intrínseca a uma promessa de salvação: da verdade revelada, transcendente, passou-se à busca de uma verdade pela razão na própria carne do mundo.
Individualismo e naturalismo continuam sendo duas premissas de nossa visão de mundo – como alicerce do secularismo moderno e fundamento de nossas construções da política e da ciência.

Cruzada antirreligiosa

A noção de verdade científica é, num certo sentido, diametralmente oposta à de uma verdade revelada; mas o modo social pelo qual é desejada, buscada, construída em práticas intelectuais precisas, está impregnado das matrizes de nossa cultura cristã, de uma tradição cultural profundamente internalizada.
God Delusion
Capa do livro original de Richard Dawkins, traduzido para o português como 'Deus, um delírio'.
Richard Dawkins, o cientista britânico que tem sido o mais vocal dos defensores do movimento neoateísta, está atento às críticas que se dirigem a sua cruzada antirreligiosa e tem mesmo um artigo dedicado a sua refutação.
Pode-se perceber que sua ira se dirige a uma forma de religiosidade característica do cristianismo (e de algumas outras poucas religiões de salvação, como o islamismo) e se nutre claramente do sentimento de uma competição com as estruturas e cânones eclesiais em que se institucionalizaram as numerosas variedades da cultura cristã.
Isso está muito distante do entendimento de que as religiosidades são formas simbólicas estruturantes da possibilidade do estar no mundo, de dispor de um sentido do mundo – a priori (como sublinhava o sociólogo francês Marcel Mauss).
Compreender que a experiência religiosa é a forma básica da existência simbólica do ser humano não quer dizer que se devam aceitar as posições das atuais igrejas estabelecidas contra as formas laicas, libertárias, que assumiram os valores cristãos na contemporaneidade; mas sim compreender sua complexa constituição e necessidade social – até mesmo para melhor propiciar a abertura aos novos formatos prezados pelas vanguardas ocidentais.
É no sentido de que a modernidade exige a defesa de valores cosmológicos estruturados e estruturantes que se pode dizer que carregue também uma ordem “religiosa”. É um modo diferente, é certo; mas todas as religiosidades diferem profundamente entre si, mesmo aquelas que não o são de modo paradoxal. 
Vaticano
Basílica de São Pedro, no Vaticano. A ideia de religião que atravessa o senso comum ocidental é uma reverberação do cristianismo, a ideologia religiosa central de nossa tradição. É a ela que se dirige a ira do movimento neoateísta. (foto: Ricardo André Frantz/ CC BY-AS 2.5)

Premissas simbólicas

Crença é uma categoria carregada de conotações culturais específicas. Vem de uma raiz latina associada ao crédito, ou seja, àquilo em que se pode confiar, e se desenvolveu como uma dimensão fundamental da moral cristã – sinônimo da fé – enquanto sinal da disposição em não ceder à dúvida, em aceitar a revelação.
É assim uma noção básica de nossa cosmovisão, subjacente às formas da verdade moderna. Nós, os que cremos na ciência, acreditamos que se trata de uma forma mais adequada de chegar à verdade (paradoxalmente definida como uma dúvida sistemática); outros creem que o livro da gênese contém a narrativa verdadeira sobre a origem da humanidade.
Isso é verdadeiro em um determinado nível da circulação de tais crenças; mas não para todos. Para a grande maioria das culturas humanas (e mesmo para a grande maioria da população das sociedades contemporâneas), tais questões não se impõem como crenças, mas como premissas simbólicas a priori. Como já definia o antropólogo francês Jean Pouillon, “é o descrente que crê que o crente crê”.
Não há uma definição de religião que não abarque uma infinidade de formas e vivências constituintes da condição humana
Vê-se, assim, que não há uma experiência uniforme do religioso; não há mesmo uma definição de religião que não abarque uma infinidade de formas e vivências constituintes da condição humana.
Tratar de tão graves questões nesta curta nota, para um público amplo, incorre sérios riscos de mal-entendido, abrindo-se o alvo para a ira tanto dos religiosos quanto dos cientistas naturais – e até mesmo de muitos antropólogos (que sempre se digladiam sobre as questões aqui ventiladas).
Há, porém, um alto interesse e urgência em advertir para a legitimidade da reflexão e busca de compreensão dos fenômenos religiosos, quer se os defina de modo estrito ou lato, restringindo-os às formas institucionalizadas da crença e do sentimento de reverência ou compreendendo-os de forma abrangente, como construção simbólica do mundo.
Afinal, a busca dos sentidos do mundo que defendo aqui como foco da crítica antropológica foi o objeto sistemático das ideologias religiosas durante a quase totalidade da experiência cultural humana – e continua a sê-lo para a maioria das gentes. Eis uma comunhão de foco; eis uma diferença – crucial – de método.

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sugestões para leitura:

Brown, Peter. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio: Zahar, 1990.

Dawkins, Richard. Deus: um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Dumont, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Foucault, Michel. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2009 [1984].

Pouillon, Jean. Remarques sur le verbe croire. In Michel Izard e Pierre Smith (orgs.), La fonction symbolique. Paris: Gallimard, 1979.
 
Fonte: Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Morto e vivo: O legado americano de Osama 

Em um certo sentido, depois do 11 de setembro, Bin Laden comandou Washington, tomando posse de seus mais profundos medos e desejos, da mesma forma que um vírus assume um computador, e o direciona para seus próprios fins. Esse foi o maior truque de Bin Laden. De certo modo, ele não nos destruiu no 11 de setembro, mas nos meses e anos que se seguiram. Ele nos ajudou a desencadear todo tipo de pesadelos que pudéssemos ter sobre nós mesmos - da tortura à criação de um arquipélago exterior à justiça, e ao gradeamento de nosso próprio mundo, onde fomos nos esconder aterrorizados. O artigo é de Tom Engelhardt.

Nos anos 1960, o senador George Aiken, de Vermont, ofereceu a dois presidentes norte-americanos um plano para lidar com a Guerra do Vietnã: declarar vitória e ir para casa. Completamente ignorado à época, é um plano que vale a pena considerar novamente hoje para a guerra no Afeganistão e no Paquistão, agora em seu décimo ano.

Como todo mundo que não é cego, surdo e mudo já sabe, Osama Bin Laden foi eliminado. Literalmente. Ou como a multidão de foliões que apareceu na frente da Casa Branca na noite de domingo improvisava com uma música de “O Mágico de Oz”: "Ding, Dong, Bin Laden está morto".

E não seria mais fácil se ele tivesse sido realmente a Bruxa Malvada do Oeste e tudo o que precisássemos fazer fosse bater os sapatos de rubi três vezes e dizer "não há lugar como o lar", para estar de volta ao Kansas.

Infelizmente, em todos os sentidos o que importa para os americanos, é uma ilusão de que Osama Bin Laden está morto. Em todos os sentidos que importam, ele seguirá lutando, impedindo uma mudança de política do governo Obama no Afeganistão, e somos nós que iremos garantir que ele seguirá no campo de batalha que a administração de George W. Bush outrora tão grandiosamente chamou de Guerra Global contra o Terror.

Evidentemente, o mundo árabe já havia deixado Bin Laden para trás antes mesmo de ele levar uma bala na cabeça. Lá, o foco estava na Primavera árabe, a gigantesca onda de protestos não-violentos que abalaram as bases da região e seus autocratas. Nessa parte do mundo, sua morte é, como Tony Karon da revista Time, escreveu, "pouco mais que uma nota de rodapé da história", e seus sonhos são essencialmente sem sentido.

Considere isso um insulto à ironia, mas o mundo que Bin Laden realmente mudou para sempre, não foi no Grande Oriente Médio. Foi aqui [o Ocidente]. [Pode-se] Celebrar sua morte, sepultá-lo no mar, não liberar nenhuma foto, e ele ainda vai continuar como um fantasma, enquanto Washington continuar suas guerras mortais e desastrosas.

O Tao do Terrorismo
Se analogias com “O Mágico de Oz” estivessem corretas, Bin Laden poderia ser comparado ao Mágico ao invés de com a bruxa. Afinal, ele foi, em certo sentido, um pequeno homem por trás de uma tela grande em que a sua aparência frágil assumiu, nos EUA, as proporções gigantescas de um supervilão, se não de uma superpotência rival. Na realidade, a Al-Qaeda, a sua organização, foi formada na melhor das hipóteses por um bando de pouca qualificação que, mesmo em seu auge, antes mesmo de ser atacada, teve limitadas capacidades operacionais. Sim, eles podiam organizar ações e assassinatos espetaculares, mas apenas um a cada ano ou dois.

Bin Laden nunca foi "Hitler", nem os seus capangas nazistas, nem chegam a Stalin e seus asseclas, embora às vezes eles fossem qualificados assim. A coisa mais próxima a um Estado que a Al-Qaeda teve foi a empobrecida e devastada área do Afeganistão controlada pelo Talibã, que abrigaram alguns dos seus "acampamentos". Mesmo o dinheiro disponível para Bin Laden, embora significativo, não era muito do que se gabar, não em uma escala de superpotência de todo modo. Os ataques de 11 de setembro foram estimados entre US$ 400 mil e $500 mil, o que em termos de superpotência é uma merreca.

Apesar da impressão apocalíptica de destruição que os seguidores de Bin Laden causaram em Nova York e no Pentágono, ele e sua equipe de assassinos representavam um relativamente modesto desafio para os EUA. E caso o governo Bush tivesse destinado a mesma energia em encontrá-lo que dedicou a invadir e ocupar o Afeganistão e o Iraque, então, pode haver qualquer dúvida de que quase dez anos teriam se passado antes de ele morrer, ou, como nunca vai acontecer agora, ser levado a julgamento?

Para o nosso azar (e sorte de Bin Laden), os sonhos de Washington não eram os de uma polícia global determinada a trazer criminosos à justiça, mas sim de um poder imperial, cujos líderes queriam assegurar que as terras com petróleo do planeta fizessem parte de uma Pax Americana em décadas futuras. Então, se você está escrevendo o obituário de Bin Laden agora, descreva-o como o mágico que usou os ataques de 11 de setembro para ampliar em muitas vezes os seus escassos poderes.

Afinal, enquanto ele só tinha a capacidade de lançar grandes operações a cada par de anos, Washington --com quantidades quase ilimitadas de dinheiro, armas, e as tropas sob seu dispor-- era capaz de lançar operações diárias. Em um certo sentido, depois do 11 de setembro, Bin Laden comandou Washington, tomando posse de seus mais profundos medos e desejos, da mesma forma que um vírus assume um computador, e o direciona para seus próprios fins.

Foi ele, graças ao 11 de setembro, que assegurou que a invasão e a ocupação do Afeganistão seria posta em prática. Foi ele, graças ao 11 de setembro, que também assegurou que a invasão e a ocupação do Iraque aconteceria. Foi ele, graças ao 11 de setembro, que trouxe a guerra americana do Afeganistão ao Paquistão, e aviões, bombas e mísseis americanos para a Somália e Iêmen, para a Guerra Global ao Terror. E nesses quase dez anos, ele fez todo tudo isso ao modo de um mestre de Tai Chi: sem usar sua força, mas o nosso enorme poder destrutivo para criar o tipo de confusão em que, sem dúvida, uma organização como a sua pode prosperar.

Não se surpreenda, portanto, que nestes últimos meses ou mesmo anos, Bin Laden tenha se retirado a um complexo murado em uma área ao norte da capital paquistanesa, Islamabad, fazendo quase nada. Pense nele como praticando o Tao do Terrorismo. Na verdade, quanto menos ele fazia, quanto menos operações ele era capaz de lançar, mais o exército americano fazia por ele, na criação do que decadentes dinastias chinesas costumavam chamar de "caos sob o céu".

Morto e vivo
Como já é óbvio, o maior truque de Bin Laden foi aplicado em nós, não no mundo árabe, onde os movimentos que ele criou, do Iêmen ao Norte da África, mostraram-se excepcionalmente periféricos e sem importância. Ele nos ajudou a desencadear todo tipo de pesadelos que pudéssemos ter sobre nós mesmos (e outros) - da tortura à criação de um arquipélago exterior e externo à justiça, e ao gradeamento de nosso próprio mundo americano, onde fomos para nos esconder aterrorizados, enquanto que lançando ataques militares externos.

De certo modo, ele não nos destruiu no 11 de setembro, mas nos meses e anos que se seguiram. Assim sendo, se não tivermos o bom senso de seguir os conselhos do senador Aiken, as guerras que continuarmos a lutar, com seus resultados desastrosos, se provarão o seu monumento, e nosso cemitério imperial (como o Afeganistão foi para mais de um império no passado).

No momento em que a imprensa e a multidão em júbilo tornam-se subitamente otimistas sobre as operações militares dos EUA, nós ainda temos cerca de 100.000 soldados norte-americanos, e 50.000 aliados, números surpreendentes de mercenários armados, e pelo menos 400 bases militares no Afeganistão, quase dez anos depois. Tudo isso como parte de uma guerra sem fim contra um homem e sua organização que, de acordo com o diretor da CIA, tem apenas entre 50 e 100 homens operando no país.

Agora, ele está oficialmente no fundo do mar. No Oriente Médio, sua idéia de um abrangente "califado" foi a mais efêmera das fantasias. Em certo sentido, porém, seu domínio sempre esteve aqui. Ele foi nossa desculpa e nosso demônio. Por ele fomos possuídos.

Quando as celebrações e festas de sua morte acabarem - e elas não serão mais longas que as do casamento real britânico - , vamos novamente nos defrontar com o mundo arruinado que Bin Laden nos desejou, e será fácil ver o quão insignificante esta "vitória", sua morte, é quase dez anos depois.

Apesar de todas as palavras dedicadas à operação que o derrubou, todos formadores de opinião tagarelando, todos as hosanas dedicadas às forças especiais norte-americanas, ao presidente, aos seus idealizadores, e aos vários serviços de inteligência, este não é um momento glorioso norte-americano. Em todo caso, nós provavelmente devíamos estar de luto pelo que enterramos muito antes de termos o corpo de Bin Laden, pelo que permitimos que ele (e nossa própria ganância imperial) incitasse-nos a fazer a nós mesmos, e o que, em função disso, fizemos, em nome da luta contra ele, para os outros.

Os cânticos de "EUA! EUA!" quando do anúncio de sua morte eram ecos esquálidos do dia 14 de setembro de 2001, quando o presidente George W. Bush pegou um megafone e prometeu: "As pessoas que derrubaram esses edifícios irão ter notícias nossas em breve!" Isso seria o início de alguns breves anos de aumento da arrogância americana e de fantasias de dominação maiores que as de qualquer terrorista islâmico fundamentalista obcecado por califados. E em breve eles iriam nos deixar pendurados em nosso mundo atual de desemprego crescente, apodrecimento de infraestrutura, aumento de preços de combustíveis, problemas de caixa, e com um povo no limite.

A menos que deixemos de lado os grupos de operações especiais e os ataques com aviões não-tripulados, a não ser que estejamos dispostos a seguir o exemplo de todos os manifestantes não-violentos pelo Oriente Médio e começar uma retirada rápida e do Afeganistão/Paquistão, Osama Bin Laden nunca morrerá.

Em 17 de setembro de 2001, o presidente Bush foi questionado se queria Bin Laden morto. Ele respondeu: "Há um velho pôster, se bem me lembro, que diz: 'procurado vivo ou morto'". Morto ou vivo. Agora, descobre-se que havia uma terceira opção. Morto e vivo.

A chance existe para atravessar uma estaca no coração do legado americano de Osama Bin Laden. Afinal, o homem que oficialmente começou tudo está teoricamente morto. Podemos declarar vitória, Totó, e ir para casa. Mas por que eu acho que o provável vencedor será o mágico do mal?

Tradução: Wilson Sobrinho

terça-feira, 3 de maio de 2011

Por que estudar história?

O objetivo da investigação histórica não é simplesmente apresentar fatos, mas a busca de uma interpretação do passado. Os historiadores tentam encontrar padrões e estabelecer o significado através do rigoroso estudo de documentos e artefatos deixados por pessoas de outros tempos e outros lugares.
O estudo da história é fundamental para uma educação em artes liberais. A história é única entre as artes liberais em sua ênfase na perspectiva histórica e de contexto. Os historiadores insistem que o passado deve ser entendido em seus próprios termos, qualquer fenômeno histórico - um acontecimento, uma idéia, uma lei ou um dogma, por exemplo - deve primeiro ser compreendido em seu contexto, como parte de uma rede de instituições inter-relacionadas , valores e crenças que definem uma determinada cultura e época. Entre as artes liberais, a história é a disciplina mais preocupados com a compreensão da mudança. Os historiadores buscam não apenas explicar os acontecimentos históricos - como e por que a mudança ocorre no interior das sociedades e culturas. Eles também tentam explicar a resistência da tradição, compreender a complexa interação entre continuidade e mudança, e explicar as origens, evolução e declínio das instituições e das idéias. A história também é distinguida pelo seu amplo alcance singularmente. Praticamente todos os sujeitos tem uma história e podem ser analisados ​​e interpretados em perspectiva histórica e do contexto, o âmbito da pesquisa histórica é vinculado apenas pela quantidade e qualidade de sobreviver documentos e artefatos.
É geralmente reconhecido que um entendimento do passado é fundamental para a compreensão do presente. A análise e interpretação da história fornecem um contexto essencial para avaliar as instituições contemporâneas, a política e a cultura. Entendendo a configuração atual de sociedade não é a única razão para estudar o passado, a história também oferece uma visão única sobre a natureza humana e da civilização humana. Ao exigir que vemos o mundo através dos olhos dos outros, que desenvolvem um sentido do contexto e coerência, reconhecendo a complexidade e ambigüidade, e que nos confrontamos com o registro não só da realização humana, mas também de falha humana, crueldade e barbárie, o estudo da história nos fornece um quadro ricamente texturizados, material para a compreensão da condição humana e às voltas com questões morais e problemas. A história é essencial para os objectivos tradicionais das artes liberais, a busca pela sabedoria e virtude.
Há outra razão para estudar história: é divertido. A história combina a emoção de exploração e descoberta com a sensação de recompensa nascido de enfrentar com sucesso e dar sentido a problemas complexos e desafiadores.
Você quer sabe mais?
Fonte:
http://history.hanover.edu/why.html

domingo, 1 de maio de 2011

A liberdade religiosa está ameaçada no país


Debora Diniz

"A liberdade religiosa está ameaçada no país"
Antropóloga afirma que o Estado está sendo questionado na Justiça por tentar privilegiar o ensino católico nas escolas públicas e que livros didáticos associam os ateus aos nazistas

Solange Azevedo
 

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ESPECIALISTA
Debora desenvolve pesquisas sobre laicidade e direitos humanos

O trabalho da antropóloga e documentarista carioca Debora Diniz tem si­do amplamente reconhecido mundo afora. Aos 41 anos, ela já recebeu 78 prêmios por sua atua­ção como pesquisadora e cineasta. Professora da Universidade de Brasília, Debora é autora de oito livros. O último deles – “Laicidade e En­sino Religioso no Brasil” – trata de uma discussão que está emergindo no País e deverá ser motivo de debates acalorados no Supremo Tribunal Federal. “Além de a lei do Rio de Janeiro sobre o ensino religioso nas escolas públicas estar sendo contestada no Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008”, lembra Debora. “Um artigo da concordata prevê que o ensino religioso no País seja, necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional.”

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"O acordo Brasil-Vaticano prevê que o ensino religioso
seja, necessariamente, católico e confessional"


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"A criminalização da homofobia incomoda comunidades religiosas
porque resultará em restrição de liberdade de expressão"



O ensino religioso nas escolas públicas, num Estado laico como o Brasil, é legítimo?
Debora Diniz - Sim e não. Sim porque está previsto pela Constituição. E não quando se trata da coerência com o pacto político. Chamo de coerência a harmonia com os outros princípios constitucionais: da liberdade e do pluralismo religiosos e da separação entre o Estado e as igrejas. Falsamente, se pressupõe que religião seria um conteúdo necessário para a formação da cidadania.

Istoé - O pluralismo religioso é respeitado nas escolas públicas?
Debora Diniz - Não. A Lei de Diretrizes e Bases delega aos Estados o poder sobre a definição dos conteúdos e quem são os professores habilitados. Isso não acontece com nenhuma outra matriz disciplinar no País. A LDB diz que o ensino religioso não pode ser proselitista. Apesar disso, legislações de vários Estados – como a do Rio de Janeiro – afirmam que tem de ser confessional. Determinam que seja católico, evangélico.

Istoé - As escolas viraram igrejas?
Debora Diniz - As aulas de ensino religioso, obrigatórias nas escolas públicas, se transformaram num espaço permeável ao proselitismo. Não é possível a oferta do ensino religioso confessional sem ser proselitista. Se formos para o sentido dicionarizado da palavra proselitismo, é professar um ato de fé. É a catequização. O proselitismo é um direito das reli­giões. Mas isso pode ocorrer na escola pública? A LDB diz que não.

Istoé - É possível haver ensino religioso sem ser proselitista?
Debora Diniz - É. A resposta de São Paulo foi defini-lo como a história, a filosofia e a sociologia das religiões.

Istoé - São Paulo seria o melhor exemplo de ensino religioso no País?
Debora Diniz - No que diz respeito ao decreto estadual, segundo o qual o ensino não deve ser confessional, sim. Mas se é o melhor exemplo na sala de aula, não temos pesquisas no Brasil para afirmar isso. A LDB diz que a matrícula é facultativa. Então, também devemos perguntar: o que a criança faz quando não está na aula de religião?

Istoé - O ensino religioso, da forma como está configurado, é uma ameaça à liberdade religiosa?
Debora Diniz - É. Quanto mais confessional for a regulamentação dos Estados, quanto mais os concursos públicos forem como o do Rio – em que o indivíduo tem de apresentar um atestado da comunidade religiosa a que pertence e, caso mude de religião, perde o concurso –, maior é a ameaça. A liberdade religiosa está ameaçada no País e a justiça religiosa também.

Istoé - Há uma tentativa de privilegiar uma ou outra religião?
Debora Diniz - Quase todos os Estados se apropriam do que aconteceu no Rio, nominando as religiões dos professores. No Ceará, por exemplo, o professor tem de ter formação em escolas teológicas. Mas religiões afro-brasileiras não têm a composição de uma teologia formal. Essa exigência privilegia os católicos e os protestantes.

Istoé - Por que o MEC não define o conteúdo do ensino religioso?
Debora Diniz - Há uma falsa compreensão de que o fenômeno religioso é um saber para iniciados, e não para especialistas laicos. Também há um equívoco sobre o que define o pacto político num Estado laico. O fenômeno religioso não é anterior ao fato político. Religião não pode ter um status que não se subordine ao acordo constitucional e legislativo. Isso é verdade em algumas coisas, tanto que o discurso do ódio não é autorizado. O debate sobre a criminalização da homofobia causa tanto incômodo às comunidades religiosas porque resultará em restrição de liberdade de expressão. Não se poderá dizer que ser gay é grave perversão, como algumas fazem atualmente.

Istoé - Os livros didáticos dizem...
Debora Diniz - Dizem porque há essa lacuna de regulação e de fiscalização. Há uma subordinação do nosso pacto político ao fato religioso. O que é um equívoco. Também há uma falsa presunção de que o saber religioso não possa ser revisado. O MEC tem um painel em que todas as controvérsias científicas são avaliadas por uma equipe que diz o que pode e o que não pode entrar nos livros didáticos. A despeito de pequenas comunidades no campo da biologia dizerem que criacionismo é uma teoria legítima sobre a origem do mundo, o filtro do MEC diz que criacionismo não é ciência. Por que, então, o MEC não define o que pode entrar nos livros de ensino religioso e os parâmetros curriculares?

Istoé - O que os livros didáticos de religião pregam?
Debora Diniz - Avaliamos 25 livros didáticos de editoras religiosas e das que têm os maiores números de obras aprovadas pelo MEC para outras disciplinas. Expressões e valores cristãos estão presentes em 65% deles. Expressões da diversidade cultural e religiosa brasileira, como religiões indígenas ou afro-brasileiras, não alcançam 5%. Muitas tratam questões como a homofobia e a discriminação contra crianças deficientes de uma maneira que, se fossem submetidas ao crivo do MEC, seriam reprovadas. A retórica sobre os deficientes é a pior possível. A representação simbólica é de quem é curado, alguém que é objeto da piedade, que deixa de ser leproso e de ser cego. É a do cadeirante dizendo obrigado, num lugar de subalternidade.

Istoé - A submissão ao sagrado é estimulada?
Debora Diniz - É uma submissão ao sagrado, à confessionalidade. Mas a confessionalidade não se confunde com o sagrado. O sentido do sagrado pode ser explicado. No caso do “Alcorão”, é possível explicar que a escrita tem relação com a história do islamismo. Não precisamos de livros que violem o sagrado, que digam que Maria não era virgem. Mas eles não precisam se submeter à confessionalidade, dizer que há só uma verdade.

Istoé - Há um estímulo ao preconceito e à intolerância nos livros?
Debora Diniz - Sem dúvida. Há a expressão da intolerância à diversidade – das pessoas com deficiência, da diversidade sexual e religiosa, das minorias étnicas. Há, também, uma certa ironia com as religiões neopentecostais.

Istoé - A ideia da supremacia moral dos que têm religião é defendida?
Debora Diniz - É. Há equívocos históricos e filosóficos, como a associação de ­Nie­tz­s­che ao nazismo. As pessoas sem Deus são representadas como uma ameaça à própria ideia do humanismo. É muito grave a representação dos ateus. Isso pode gerar desconforto entre as crianças cujas famílias não professem nenhuma religião. Já que, nos livros, elas estão representadas como aquelas que mataram Deus e associadas simbolicamente a coisas terríveis, como o nazismo.

Istoé - As aulas facultativas podem se tornar uma armadilha?
Debora Diniz - Sem dúvida. A criança terá de explicar suas crenças, o que deveria ser matéria de ética privada. Pior: ao sair da aula com um livro como esse, as crianças talvez tenham de explicar por que não têm Deus.

Istoé - Não há reflexões históricas sobre o significado das religiões?
Debora Diniz - Nenhuma. Há uma enorme dificuldade de nominar as comunidades indígenas como possível religião. Elas possuem tradições e práticas religiosas ou magia. No caso das afro-brasileiras, também se fala em tradição.

Istoé - O que levou o Estado a proteger o ensino religioso na Constituição?
Debora Diniz - Foi uma concessão a comunidades religiosas numa disputa sobre o lugar de Deus e da religiosidade na Constituição. A religião foi mantida no que caracterizaria a vida boa e a formação da cidadania. Isso é um equívoco. A religião pode ser protegida pelo Estado, mas não no espaço de promoção da cidadania que é a escola.

Istoé - O ensino religioso está ganhando ou perdendo espaço no mundo?
Debora Diniz - Essa é uma controvérsia permanente. Nos Estados Unidos, um país bastante religioso, não está na escola pública. Na França, o país mais laico do mundo, também não. Exceto na região da Alsácia-Mosele. Na Bélgica e no Reino Unido está. Esses países hoje enfrentam com muita delicadeza a islamização de suas sociedades. Na Alemanha, grupos islâmicos já começaram a exigir o ensino de sua religião nas escolas públicas.

Istoé - Mas na França também há o outro lado, de proibirem vestimentas...
Debora Diniz - Esse é o paradoxo que a França enfrenta neste momento, sobre como respeitar o modelo da neutralidade. A lei do país proíbe símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas – cruz grande, solidéu, véu. O que o outro lado vai dizer? Que isso viola um princípio fundamental, que é a expressão das crenças individuais estar no próprio corpo.

Istoé - Quais são os desafios do ensino religioso no Brasil?
Debora Diniz - São gigantescos e podem ser divididos em três esferas. Uma é a esfera legal. O ensino religioso está sob contestação nos foros formais do Estado: no Supremo, no MEC e no Ministério Público Federal. Além de a lei do Rio de Janeiro estar sendo contestada no Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008.

Istoé - E do que trata esta ação?
Debora Diniz -
Um artigo da concordata prevê que o ensino religioso na escola pública seja, necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional. Estamos falando da estrutura da democracia. Segundo o ministro Celso de Mello, em toda a história do Supremo, só tínhamos tido uma ação que tocava na questão da laicidade do Estado. Isso foi nos anos 40. Agora, temos pelo menos duas. A segunda esfera é como o ensino religioso pode ou não pode ser implementado. O MEC precisa definir quem serão os professores, como serão habilitados e quais conteúdos serão ensinados. A terceira esfera é a sala de aula, a garantia de que vai ser um ensino facultativo e de que o proselitismo religioso será proibido.

Fonte: Revista Isto é (www.istoe.com.br) Nº Edição: 2164/ 29 Abril de 2011.