quarta-feira, 3 de abril de 2013

Memórias e histórias de cativeiro e liberdade

Dossiê
Memórias e histórias de cativeiro e liberdade
Há 120 anos os escravos brasileiros eram libertados. O que faziam e quem eram os cativos tão importantes para a formação nacional.

POR FLAVIO GOMES E PIETRA DIWAN









SHUTTERSTOCK

A escravidão marcou a sociedade brasileira de várias formas. Foram quase 400 anos de trabalho escravo com indígenas e africanos. O fim da escravidão para várias sociedades nas Américas começou nas primeiras décadas do século XIX. O Brasil - que recebeu cerca de 40% de todos os africanos escravizados enviados para as Américas - foi o último país a abolir a escravidão. Não muitos anos depois do 13 de maio de 1888, setores das elites, intelectuais, cientistas e literatos já falavam da escravidão como coisa de um passado muito distante. A idéia era apagar a "mancha" da escravidão e eliminar a memória das lutas abolicionistas do final do século XIX. Escravos e libertos eram transformados em "negros" e "pretos" numa perspectiva racial de classificação estigmatizante das novas hierarquias sociais do alvorecer do século XX. A abolição não foi acompanhada de políticas públicas que garantissem terras, educação e direitos civis plenos aos descendentes de escravos e libertos. Pelo contrário, políticas públicas urbanas e higienistas refundaram as diferenças sob novas bases sociais e étnicas. Até a década de 1930, o 13 de maio era feriado nacional e com festas cívicas, além de comemorações populares. Apesar da manutenção de faces da desigualdade, descendentes de escravos e mesmo libertos comemoravam - se não a cidadania plena - a liberdade conquistada com a Lei Áurea. O passado não era muito distante. Mesmo hoje não seria difícil encontrar pessoas de mais de 90 anos de idade e filhos diretos de escravos nascidos antes de 1871, quando uma lei decretou o ventre livre para mães cativas. Caso seus pais tivessem também alcançado a idade semelhante, teria falado como foi ser escravo até os 20 anos de idade. A geração negra mais idosa alcançada hoje nos nossos censos modernos e abrangentes do IBGE pode ser filha e é predominantemente neta de ex-escravos do 13 de maio de 1888.
Ainda conhecemos pouco sobre o pós-emancipação no Brasil. O que representaram, em áreas rurais e urbanas, as primeiras décadas da liberdade para milhares de homens e mulheres - e seus filhos, netos e sobrinhos - que conheceram a escravidão? Já sabemos mais, e cada vez melhor, como viveram os escravos e como pensaram os senhores nos séculos XVII, XVIII e XIX. A influência da África no Brasil tem sido um importante eixo dos renovados estudos sobre o tráfico negreiro e seus impactos, os cenários de captura, embarque e desembarque, assim como comparações com outras áreas coloniais. Da mesma maneira, as imagens de uma África précolonial homogênea ou do comércio europeu, visto somente a partir do mercantilismo, têm sido rediscutidas em pesquisas nas universidades brasileiras e procuram redefinir os interesses do mercado de escravos também pelas dinâmicas internas das várias sociedades africanas e suas transformações, inclusive participando de várias maneiras no tráfico negreiro. Ao contrário das perspectivas quantitativas e generalizantes, útil também tem sido repensar as origens e culturas africanas no Brasil, não só enfatizando os ciclos do açúcar, do ouro e do café e suas áreas econômicas correspondentes, mas igualmente outras rotas africanas, impactos demográficos e as redefinições das identidades africanas na diáspora. O cotidiano de escravos, libertos, senhores e fazendeiros surgem como novas pesquisas e enfoques diversos.

Por essa razão, a revista Leituras da História preparou esse dossiê especialmente para comemorar os 120 Anos da Abolição da Escravidão no Brasil. Mostrando como novas pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação de universidades de norte a sul do país podem ajudar a sociedade brasileira a entender e refletir sobre os caminhos que levaram a escravidão no Brasil a ser uma das mais longas e diversificadas do planeta. Esse fato não merece nenhum mérito especial e, se merece alguma atenção, é pelo compromisso com a diversidade dessas pesquisas que pretendem captar e elucidar fragmentos de um período tão complexo e importante da história brasileira que ainda tem muito a ser contada.

FLÁVIO GOMES é professor do departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
PIETRA DIWAN é editora e mestre em História pela PUC-SP.



Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/10/artigo95995-1.asp
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